Déjà vu
Meu telefone celular tocava insistentemente. Não poderia atender. Naquele ano acumulava um número expressivo de multas de trânsito, todas pelo mesmo motivo, falar ao celular enquanto guiava. Minha profissão me obrigava a dar atenção total a meus clientes e dessa forma cometia uma infração atrás da outra. Olhei no visor e vi o número da minha mãe, ela sempre precisava de algo e dessa vez não parecia ser diferente, olhei para os lados a fim de me certificar que nenhum marronzinho estava a espreita e atendi.
- Oi mãe, fala rápido que estou dirigindo.
Minha rispidez era uma forma de defesa, sempre me precavia dos pedidos de minha mãe, eles iam de um quilo de trigo a levar um bolo lá nos confins do mundo pra deixar uma pessoa feliz. Ela fazia festas pra todos, todos mesmo. E sempre sobrava pra mim.
- Filho onde você esta?
- Estou no centro mãe...
- Seu pai...
- O que foi mãe, o que aconteceu com meu pai?
- Ele morreu filho...morreu
Meu coração estava dividido entre a dor e o alívio. Parei o carro e tentei confortar minha mãe, eram mais de 40 anos de um casamento cheio de altos e baixos, assim como todos que duram tanto tempo, ela desligou o telefone e preparei-me para cuidar dos atos para o sepultamento.
Fui até a Santa Casa Estela Maris, informei que meu pai havia falecido e me direcionaram ao necrotério. Entrei e vi meu pai deitado em uma mesa de mármore. Seu rosto mostrava uma paz que a muito tempo eu não via, aproximei-me e toquei seu rosto, foram alguns anos de muito sofrimento. O alzheimer corroeu toda sua sabedoria, sua memória, sua dignidade e sua saúde e corroeram a todos a sua volta. A dor e o alívio misturavam-se em sentimentos sem resposta, olhava para meu pai e apenas agradecia a Deus por ele ter ido embora de forma tão suave, morreu na madrugada, em pleno sono. Foi buscado pelos anjos tenho certeza. Fiquei a seu lado por mais de uma hora, em silêncio conversei com ele como a muito não fazia, lembranças de uma vida inteira resumida a uma mesa de pedra.
O mais intrigante é que eu não tinha motivos pra chorar, apenas agradecia pelo fim de tanta dor.
Saí e fui cuidar dos preparativos para o sepultamento.
Foi uma cerimônia simples, assim como foi sua vida, regada de simplicidade e valores impagáveis.
Somente após o sepultamento comecei a me dar conta que meu pai tinha ido embora, e que só o encontraria novamente em um outro plano, não faria mais parte de minha vida terrena, não veria meu filho crescer, não veria tantas vitórias alcançadas, não assistiríamos mais um jogo do Timão.
Chorei apenas três dias depois.
Hoje, já passado alguns anos, a companhia de um litro de bordô, e de velhas fotografias, trouxeram de volta o sorriso do meu velho pai e a certeza de que em breve sorriremos juntos novamente.