Mestre Gil 2ª parte

Mestre Gil olhou de frente para o seu filho com ternura. Perante o pedido, sentiu um arrebatamento em desabafar. Sim, aquele era o momento de repartir as alegrias e dores com a sua família. O rosto cansado ganhou cor e os olhos, um novo brilho, quando mestre Gil começou.

- Corria o ano de 1471, eu era grumete numa das naus que partiu de Lisboa, rumo a mais uma campanha do senhor Dom Afonso V, em África. Uma parte da esquadra veio do Porto que se juntou a nós em Lisboa. De Lisboa, fomo-nos juntar à de Lagos, de onde partimos rumo a África.

Nunca em minha vida vira tantas embarcações juntas. Calculo que fossem para cima de quatrocentas naus que transportavam os mais de 27.000 homens. Esta poderosa armada partiu de Lagos e três dias depois à tardinha, já estávamos em frente à praça de Arzila.

O objectivo era conquistar Tânger, fruto já de duas tentativas, onde muito sangue português foi derramado. Onde morreu cativo e de forma infame, o Infante D. Fernando, tio de D. Afonso V.

- Meu pai! De forma infame?..

- Sim! De forma infame! Pois de que forma se pode qualificar quem não honrou a promessa, a ponto de abandonar o irmão que ficou como penhor da palavra dada. Foi abandonado à sua sorte de escravo, para que os outros pudessem regressar ao Reino. O consenso na fuga foi esquecido na segurança da pátria. Razão tinha o Infante, que na altura pressentiu o seu destino quando se despediu do irmão Dom Henrique, lhe disse: "Rogai por mim a El-Rei, que é a última vez que nos veremos!"

Agora, movido por interesses de vingança e de glória, fortemente apoiado por uma nobreza ociosa, ferida no seu orgulho e ávida de conquistas, engajou e custeou esta aventura.

Apesar de estarmos em Agosto, o mar estava encapelado, o que dificultava o desembarque previsto para a madrugada seguinte.

Enormes dificuldades no desembarque complicaram a entrada dos navios no porto interior, que só pôde ser feito com recurso a embarcações ligeiras, gerando-se tal confusão, que chegaram inclusivamente algumas barcaças a despedaçar-se contra os recifes, morrendo inutilmente muitos dos nossos.

Foi numa dessas barcaças, onde eu remava contra a fúria das ondas que apesar do nosso esforço não conseguimos evitar que ela se voltasse, afogando muitas das tropas que transportávamos.

Muitos de nós, no meio daquele desastre, tentavam agarrar-se a qualquer destroço que nos ajudasse, mas o equipamento e a confusão arrastavam aquelas almas para o fundo, sem sequer chegarem a combater, a não ser contra a fúria do mar, enquanto outros eram jogados contra os rochedos.

O Rei acorreu ao local do desastre sem no entanto conseguir prestar assistência aos náufragos, à vista da grande desordem. Nessa altura uma barcaça pronta para o desembarque de el-rei, desobedecendo ao mestre, tentava resgatar náufragos, agarrados a fragmentos de embarcações destroçadas pelos recifes.

Em grande aflição, eu que nadava bem, vi a morte à frente dos olhos e com desespero tentava-me agarrar a qualquer barcaça, mas sem sucesso, pois com o medo que ao agarrarmo-nos pudesse virar a embarcação, éramos expulsos com os remos pelos marinheiros. Porém no meu desespero, agarrei-me a uma que por mim passava, apesar de ter levado com um remo na mão, com a outra tentei içar-me. Um marinheiro com a mão na minha cara empurrava-me. Eu já sem forças deixei-me escorregar para o abismo, já que parecia ser esse o meu destino, quando uma mão me agarrou pelos cabelos, depois pelos ombros e me puxa. Estonteado, já na barcaça, olho para o meu salvador! Era o meu amado Príncipe D. João.

Após o difícil desembarque, o rei sem mesmo esperar pelo palanque (espécie de trincheira de paliçada trazida do reino na frota e que as fúrias do mar não deixaram desembarcar), mandou levantar logo acampamento e as primeiras bombardas, protegidas com trincheiras, bastilhas e outros artifícios de fortificação ligeira. Ainda nesse dia, o fogo das bombardas derrubou dois lanços de muralhas. No dia seguinte, dia de S. Bartolomeu, logo ao amanhecer, o alcaide de Arzila mandou içar nas muralhas o sinal de rendição; mas, ébrias de saque, as tropas de Afonso V, vendo-o partir apressadamente ao encontro dos parlamentários mouros, trataram de antecipar-se a quaisquer negociações… num desrespeito pela autoridade real, pondo em risco a missão. O Príncipe esboçou um trejeito de desagrado perante tal ofensa, fazendo crer a todos que, ele como rei, tal não perdoaria.

E sem ordem nesse plano, começam a encostar as escadas às muralhas e deram o assalto geral pela brecha aberta na véspera. Pôde o ímpeto dos assaltantes remediar a imprudência do ataque. Desprevenidos, aterrados, os Mouros abandonaram as muralhas, refugiando-se no castelo e na mesquita, cujas portas os Portugueses as britaram com vaivéns, depois de tentarem arromba-las sem sucesso com machados. Em breve o forte castelo, último refúgio dos Mouros, foi atacado também. Antes mesmo que as escadas chegassem, os assaltantes subiram por meio das lanças, paus e cordas, travando depois com os defensores, no pátio do castelo, um combate tão feroz que todo o terraço se transformou numa vasta poça de sangue, onde os cadáveres se amontoavam. Obtida facilmente a vitória, toda a cidade foi posta a saque pelos assaltantes. Assim Arzila foi tomada aos Mouros.

Continua

Lorde
Enviado por Lorde em 12/09/2013
Código do texto: T4478114
Classificação de conteúdo: seguro