Mestre Gil

Na penumbra da divisão mais larga da humilde cabana, uma pequena assembleia rodeava o catre do mestre Gil. O mesmo catre, onde fora depositado seis anos antes, o corpo inanimado do Príncipe Dom Afonso, após a malfadada queda da sua montada.

- Dispersai senhores, dispersai e deixai o meu pai respirar, pede Álvaro com brandura, ao mesmo tempo que, de braços abertos, convidava a sair para a rua toda aquela gente.

A sós com o ferreiro, que arrumava os utensílios com que executara a sangria, perguntou:

- Então? Mestre Teles, então?

- Há que dar tempo ao tempo. Fiz o que pude, agora só o tempo e a Graça de Deus o pode ajudar…esta humidade junto ao rio também não ajuda. Tentai convencer vosso pai a ir para Santarém, para a vossa quinta.

- Mestre quantas vezes tentei, mas não, desde que aconteceu aquela desgraça, comprou a cabana ao pescador e teima que é ali que há-de acabar os seus dias. Tal qual o filho do nosso senhor D. João. Nem vendo a nora aborregada, o demove.

- Ai, ai, quem viu o mestre Gil e quem o vê.

- É verdade senhor! Desde o fatídico dia da queda do nosso senhor, o Príncipe Dom Afonso, que é vê-lo a definhar de dia para dia, como se fosse culpado de coisa alguma. Alguma coisa o consome desta maneira, mas o quê? Será também a dor da morte de el-rei?

- Não sei filho!.. Não sei…mas ele lá saberá. Ah!.. Não te esqueças dos caldos de galinha para teu pai recuperar.

- Ide descansado mestre Teles! Do que depender de mim, o senhor meu pai será bem servido.

Estático na ombreira da casa, Álvaro, ficou a ver o mestre ferreiro afastar-se, seguido dos amigos que lhe visitaram o pai. Uma profunda ruga marcava-lhe o rosto jovem, reflexo da doença do seu pai e da recente morte de el-rei D. João II, por quem, tal como seu pai, tinha grande estima.

«Como tudo mudara de repente. Há seis anos regozijara com o casamento do Príncipe Dom Afonso, ele e todo o reino, num fausto nunca visto e demorados festejos. Durante o banquete, deslumbrara os monarcas dos reinos vizinhos, com apresentação de um carro de bois ricamente decorado, carregado com carneiros assados inteiros e à canga, dois bois com cascos e chifres em dourado, também eles assados inteiros. Tudo em cima de uma máquina que os criados impulsionavam perante os convidados. Após os aplausos e a boa impressão que el-rei causou, mandou que os mesmos fossem distribuídos pelo povo».

«Vira a comitiva real, no seu regresso a Santarém, fazer o percurso em pequenas jornadas, com demoras aqui e além, instalando-se em pleno campo, pernoitando em simples tendas, caçando e foliando durante dias, contagiando os povos à sua passagem».

Um gemido – interrompeu-lhe os pensamentos e fez Álvaro olhar para dentro, na direcção do pai.

- Está bem, senhor meu pai? – Perguntou.

- Malditos!.. Malditos. – Tartamudeou o enfermo de olhos fechados, o que levou Álvaro a pensar que o pai sonhava.

Passados dois meses, as cores, ainda que tenuemente, regressaram ao rosto do mestre Gil, mérito dos cuidados da nora e do seu amado filho que tudo fez para recuperar o pai. Era o ano da graça de 1496.

- Álvaro, ajuda-me!...Preciso desentorpecer as pernas, sorver a brisa do Tejo e sair destas quatros paredes que me amofinam.

Amparado pelo filho, mestre Gil caminhava meio cambaleante junto ao rio, observando cada metro de terreno como se fora a primeira vez que ali passeava. Subitamente estacou, caiu de joelhos, com olhar fixo nuns metros à frente.

- Foi ali!.. - Exclamou com voz embargada e o indicador a tremer. – Que ele caiu, para desgraça dos humildes e gáudio dos poderosos. Maldito!.. Mil vezes maldito sejais vós D. João (D. João de Meneses, aio do príncipe, que após a queda de D. Afonso, temendo a fúria de D. João II, fugiu para Castela), vós que fugistes para junto dos carrascos do meu Príncipe.

- Calai-vos meu pai, alguém pode ouvir-nos! Quereis perder-nos?..

Grossas lágrimas corriam pela face curtida de mestre Gil. A custo, Álvaro conduziu para casa o pai soluçante.

- O pai não pode dizer o que disse, ainda mais agora com D. Manuel como el-rei.

- Perdoa-me filho! É esta cabeça de velho tonto que se esquece que o nosso amado monarca já não está entre nós.

- Eu sei meu pai, eu sei! Um rei que será lembrado como o foi Dom Pedro. Rei dos seus povos muito querido e dos grandes, muito temido.

Com o pai respirando com dificuldade, Álvaro mandou chamar mestre Teles que lhe administrou uma tisana. À noite, já mais calmo, mestre Gil conversava com a nora.

- Ana! Mas como posso esquecer a desgraça que bateu à porta deste reino, como?.. Santo Deus! Como?

- Não vos apoquentando tanto. Lembrai-vos que todos nós sofremos ainda mais, vendo-vos assim. Além do mais, este que trago na barriga há-de querer ouvir do próprio avô a sua participação na conquista de Arzila.

Recostando-se um pouco, mestre Gil semicerrou os olhos e esboçou um ligeiro sorriso. – Bons tempos, esses! Bons tempos. – Comentou.

- Contai senhor meu pai! – Pede, Álvaro. – Far-lhe-á bem recordar e a nós ouvi-lo.

Continua

Lorde
Enviado por Lorde em 12/09/2013
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