um segundo de humanidade

Um dia eu simplesmente não me sentia, como se pairasse na tênue linha entre a realidade e a loucura, não capaz de decidir o lado que deveria tomar, ininteligível para mim, estado mórbido e negro como a noite solitária de um inverno rigoroso, mas fazia sol lá fora e através das vidraças eu via a felicidade nos olhos das outras pessoas, eu fechada na minha escuridão só vislumbrava a vida que eu não tinha, mas que a desejava, a vida simplesmente esvaiu-se de mim, apenas o contorno do meu corpo me fazia ainda humana; sim, para quem me olhasse eu era uma pessoa com tristezas e alegrias como todas as outras, eu sabia que há muito a penumbra foi tomando formas mais escuras, a alegria já não existia e a tristeza por sua vez também não, deixei de sentir todas as sensações humanas, passei a me identificar com as coisas não com os seres, a penteadeira e seus três espelhos refletiam minha imagem triplicada por nada, eu era o nada, ela própria se espelhava mais humana e vivaz e guardava com ela todas as minhas imagens de quando ainda existia, mesmo que fossem apenas reflexos de reflexos de instantes vividos por mim, apesar disso eram mais próximos da essência da minha existência e ainda mais ela guardava em suas três gavetas todas as sutilezas clandestinas que eu sentira, abri uma para ver se podia senti-las, insuportável sentimento de perda, eu desaparecera ainda estando presente, seus adornos também continham segredos revelados em sussurros, eu sabia que estavam lá, não os podia mais ouvir, eu evaporei, queria ter os mesmos quatro pés fincados no chão a apoiar a minha estrutura assim como esse móvel, ele está presente e ostenta toda a sua imponência diante da vida, viro os espelhos laterais para dentro para ver se juntando as três imagens de mim eu me vejo, só um esboço mal elaborado com um lápis preto vislumbra de forma bastante embaçada uma caricatura do que já fui, irreconhecível para mim e para a penteadeira, até a banqueta de assento de veludo vermelho estranhou meu corpo, ela não sentiu meu peso porque não existo, porque não peso, não gravito, mais uma vez espio sorrateiramente a vida lá fora, as crianças têm uma peculiaridade que são só delas, achar alegria nas pequenas belezas e nas coisas que já não reparamos, a simplicidade de como vivem intensamente cada momento é invejável, qualquer trivialidade parece um motivo para sorrir e a vida explode nelas sem grandes motivos, o brilho em seus olhos dizem mais do que todas as palavras reunidas poderiam exprimir, viro de novo para a penteadeira e ela disfarçadamente ri de mim porque sabe que sua existência é mais preciosa do que a minha, invejo-a, ela não tem que lutar com as frustrações que eu carrego, apesar do sol faz frio, só que eu não sei se é externo, eu me remexo toda diante da minha indignação, os sulcos no meu rosto já não têm sentido, eles já não contêm as nódoas deixadas pelos sofrimentos e felicidades sentidos, eles estão ocos e desprovidos de razões, os espelhos teimam em tentar esboçar alguma imagem, mas eles não podem realizar o impossível, não há o que ser capturado, talvez nas gavetas por estarem cerradas, ainda sobreviva algum sopro de minha vida, não, não falo das gavetas da penteadeira, mas as da alma, tento desencravar alguma sensação, algum sentimento de dentro delas, mas é em vão, tão certo quanto a incerteza de todas as coisas, não encontro nada, se meu corpo físico desaparecesse eu me sentiria aliviada. Tento uma das gavetas da penteadeira, quem sabe nessa eu consiga, lentamente vou puxando, uma pequena luz metálica e gelada chama minha atenção um tanto quanto desatenta pela desesperança, um crucifixo de prata com pedrinhas brilhosas, acho que brilhantes, que pertencera a minha mãe, por um instante a doce lembrança dela me trouxe um pouco de sentimento, mas tão fugidio que sequer o pude sentir de fato, aperto-o com força entre os dedos, quero capturar outra vez aquele micro segundo de humanidade, já não posso mais, a fugacidade é a minha arma mais poderosa tanto para os outros quanto para mim mesma, por um lado boa porque não me permite cair em profundo desespero; por outro, maldosa e sádica porque simplesmente me mata ainda viva, coloco o crucifixo de onde nunca deveria ter tirado e fecho a gaveta para sempre, a gaveta da penteadeira e a da alma também. Novamente estamos nos olhando, a penteadeira e eu, cada uma com suas dúvidas, tento desnudar meu ser de todas as mazelas e me tornar humana, é inútil, ela venceu, tanta humanidade me fez mal, então pego uma colcha preta e a cubro para que não mais me venha convidar a me encontrar, olho para trás e a vejo encolhida no canto, ouço seu pranto, viro as costas e saio, tanta sentimentalidade me enoja.

dilma leite schmitz
Enviado por dilma leite schmitz em 06/09/2013
Código do texto: T4470339
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