A FORMIGA E A MONTANHA

Como se não fizesse parte da paisagem, imponente, a montanha admirava as coisas que se estendiam ao seu redor, e, realmente, se sentia à parte aquele gigantesco monumento, as nuvens pareciam roçar-lhe suavemente o pico, mantinha-se assim indiferente a tudo: ao rigoroso inverno que queimava os lírios nos campos, à impiedosa seca que fazia evaporar os leitos dos rios, à tempestade impaciente, ruidosa, que atirava longe os galhos das árvores e fazia encolher os bichos na floresta, aos raios ameaçadores que rasgavam o céu enegrecido partindo como uma lâmina afiada o tronco de árvores seculares, do alto e em todas as direções, seu olhar sobre o horizonte, ao mesmo tempo em que confirmava seu domínio limitava a visão dos que estavam à sua volta, todo esforço para ver além era detido pela grandiosidade da montanha.

Personificada como limite de todas as coisas, desconhecia os seus próprios limites, todas as coisas, dedicavam a ela os sacrifícios de suas quimeras, pois, a montanha era, e isso coisa alguma poderia negar, uma grande parede limitando aquele universo que, disposto em hierarquia, não conhecia nada que fosse superior a ela. Assim foi que por séculos e séculos, tudo que nasceu e morreu por ali esteve sob o domínio incontestável da grande montanha. Mas eis que entre todas as coisas que ocupavam espaço naquele lugar, apareceu uma que se insurgiu contra o secular domínio da montanha, assim, pela primeira vez, depois de tanto tempo alguém se contrapôs ao incontestável, primeiro solitária, pensativa..., depois, tentando persuadir as outras coisas que lhe eram mais próximas, foram incontáveis os discursos, abraçou com todo vigor aquela causa que, após alguns anos, possuía todos os ingredientes para se configurar inglória, pois, a idéia do intransponível já tinha se instalado ali. Que petulância comentavam uns; que disparate comentavam outros. Como pode esta insignificante formiguinha se insurgir contra a montanha? Era o que diziam a maioria. Porém, decidida a lançar seu olhar para além da montanha a formiguinha mantinha-se firme nas suas convicções, pensava; não podemos viver em um mundo que conhece a idéia infinito e sermos limitados pelo obstáculo mais próximo, nós precisamos ver além da montanha, sentiu um frio na espinha quando olhou ao longe aquela imensa rocha que delimitava o horizonte. Naquele lugar, parecia não existir nada que chegasse mais perto do céu, o céu onde está Deus, que fecha de maneira inequívoca a idéia supremo, supra, a cima de todas as coisas. É certo, dizia a formiguinha, que as coisas precisam de obstáculos para que a existência seja dinâmica, mas se há obstáculos estes são para serem vencidos, e aí está a mágica do existir. É preciso, sempre, atingir o horizonte que nos limita para depois, então, lançar o olhar para um novo ponto, é essa impaciência com os limites que move a grande roda da vida. A formiguinha levava insistentemente seu discurso revolucionário para todos os lugares por onde passava, mas as coisas por ali já tinham se acomodado tanto ao horizonte limitado pela montanha, que pouco adiantavam os discursos da formiguinha. Por sua diferença e pela indiferença das outras coisas, a formiguinha foi ficando cada vez mais isolada e distante de tudo que a cercava, isso, porém, não a abateu, pelo contrário, encheu-a de um ânimo renovado, jamais visto por ali até então. Nada poderia demover aquela pequena criatura da idéia de insurgir-se contra os limites da montanha. O mundo da pequena, até então limitado, começou expandir-se, pois ela conseguia ver em seus sonhos a calmaria dos verdes prados, sentir o perfume das rosas nos campos, ser embalada pelo gorjear dos pássaros, sentir, também, a doce brisa úmida vinda dos bosques, ou seja, a formiguinha já vencera os limites da montanha antes mesmo de enfrentá-los, faltava-lhe, então, tornar o sonho factível. A montanha por sua vez estava tão acostuma a excelência da sua existência que não se comovia mais com todo sacrifício e adoração das coisas daquele lugar. O indestrutível e o invencível se apoderaram da sua alma, pouco se incomodou, do alto da sua onipotência, quando lhe chegou a notícia de que aquele insignificante súdito se insurgira contra ela. Que poderá fazer esse reles ser contra minha grandiosidade de montanha? Contra o meu domínio incontestável sobre todas as coisas? Ora sou o fim para tudo o que aqui existe. E assim a guerra entre as extremidades de um mesmo universo se fez, era como se fosse a luta do fim contra o começo, da base contra o topo, do nada contra o tudo, do negro contra o branco, do vazio contra o cheio, do decadente contra o ascendente, do bem contra o mau, de Deus contra o diabo. A montanha, acostumada à praticidade de tudo, não entendeu que ali além de uma peleja de corpos havia uma disputa de almas e quem é capaz de dizer qual é a grandeza que revela a dimensão de uma alma? O universo limitado pela montanha estava acostumado a tê-la como medida de todas as coisas. Declarada a guerra surreal a formiguinha preparou-se para o combate, sabia da ampla vantagem do seu adversário que, prostrado na sua imobilidade defensiva, aguardava o ataque de um inimigo que, a princípio, não oferecia resistência. A formiguinha cercou-se das suas mais poderosas convicções, armou-se das suas mais fortes verdades, afiou a lâmina da determinação, encheu-se de coragem, abandonou o formigueiro que, àquela altura já a odiava e partiu em uma caminhada solitária. Contaram-se dias e noites no caminho rumo à montanha e nesse caminho foram inúmeras as vezes que as coisas daquele lugar tentaram dissuadir a formiguinha daquela luta inglória. Quanto mais se aproximava da montanha, maior se afigurava sua adversária, pensava consigo mesma, ela se parece bem maior do que eu pensava, entendeu, naquele instante, que se quisesse ganhar aquela guerra, teria que achar em Aquiles o ponto fraco. Quando, finalmente, chegou aos pés da montanha, extenuada da longa caminhada, já não via como antes aquela imensa rocha, naquele instante ela destituiu-se de todo simbolismo e transformou-se apenas em um objeto a ser transposto, superado. Ali aos pés da grande adversária sentiu, pela primeira vez, uma certa leveza no pensar. Não havia, ali, a opressão das coisas do seu lugar. Ao perceber a presença da formiguinha nas proximidades, a montanha não acreditou em tamanha petulância, ninguém, até aquele momento, tinha ido tão longe. Destruirei essa insolente para que ela sirva de exemplo para as coisas deste lugar! E como a montanha estava mais perto de deus, rogou-lhe, oh meu deus mande-me uma geada rigorosa, que chova granizo sobre essa formiguinha atrevida. E assim deus fez, antes mesmo de encarar a escalada caiu sobre a formiguinha uma saraiva medonha, a pobre, desesperada, procurou abrigo em lugar seguro e ficou ali, quase morrendo de frio, até que a tempestade passasse, e quando o sol brilhou novamente a formiguinha, decidida, retomou seu caminho em direção à montanha, vendo que a formiguinha resistira ao primeiro ataque, a montanha novamente suplicou. Deus meu deus, faça da minha ira a tua, que caia sobre essa impertinente a maior tempestade vista por este lugar. E assim deus fez, o vento assobiava uma canção de morte, os raios estalavam feito chicote de carrasco, as nuvens dançavam no céu escuro e uma chuva torrencial desabou sobre a formiguinha, levada pela enxurrada montanha a baixo, a pobre formiguinha foi arrastada para o lugar de onde partira. Foi ali, desta vez, motivo de chacota. _ Não te disse, como ousa enfrentar a grande montanha? Pobre coitada, agora ela desiste. _ A formiguinha calou-se a todo e qualquer tipo de comentário. Quando finalmente recuperou-se dos ferimentos retomou a caminhada rumo à montanha com a certeza de que confirmara de perto o que deduzira ao longe: a montanha era, tão e simplesmente, um obstáculo a ser vencido. Retomou seu caminho e, foram anos e mais anos de caminhada rumo à grande montanha, desta vez a formiguinha foi preparada para a grande geada e também para a grande tempestade, ganhara experiência, pois a adversária ao atacá-la mostrara suas armas. A montanha desesperou-se ao ver a inimiga avançando, pediu novamente ao seu deus. Deus meu deus, faça cair sobre esse ser desprezível, tempestade duas vezes mais poderosa do que a que mandastes, porém, a formiguinha, agora, ancorada em suas determinações, plantada em suas verdades, sobreviveu aos raios, aos ventos e à enxurrada avançando em uma escalada lenta e vertiginosa, às vezes as forças se esgotavam e ela se detinha em algum ponto da montanha para recuperar-se e prosseguia. A montanha já não se preocupava com a formiguinha. O que poderia fazer aquela simples criatura contra ela? Quando finalmente a formiguinha chegou ao topo da montanha, superando de vez seu maior obstáculo, já se esgotara mais da metade da sua possibilidade de existência e, tudo era como ela imaginara, lá estavam os bosques, a calmaria dos prados, os campos floridos..., a formiguinha ao superar seu grande obstáculo tornara-se maior que ele, estava, agora, mais próxima de deus e, estranhamente, percebeu que além do deus da montanha existia um outro Deus, maior e mais poderoso, que durante aquele tempo todo, esteve escondido atrás da montanha e, estando diante dos dois deuses, a formiguinha, lembrando das coisas que deixara para trás rogou ao Deus maior, Deus meu Deus, rogo a ti que descortine para as coisas do meu lugar o horizonte que agora vejo. E Deus disse a formiguinha _ Afaste-se da montanha, siga em frente, não olhe para trás. Quando a formiguinha já se encontrava distante da montanha, Deus lançou sobre ela uma grande bola de fogo que chocou-se contra o topo da montanha em um estrondo jamais ouvido por ali, a montanha, primeiro se incandesceu, depois esfarelou-se em partículas tão pequenas que se assemelhavam a grãos de areia, assim, a grande rocha transformou-se em um monte de areia. Ao ver a inimiga enfraquecida, pois perdera sua firmeza de rocha, a formiguinha fez outro pedido a Deus. _ Deus meu Deus! Que caia sobre a montanha a mais impiedosa das tempestades. _ E assim Deus fez. A montanha rocha, transformada agora em montanha areia, não resistiu, os grãos desceram em enxurrada espalhando-se pelos campos daquele lugar, o grande monumento se desfez, alargando para as coisas daquele lugar o horizonte até então limitado por ela. A montanha desintegrou-se e integrou-se à paisagem habitual da qual ela se destacava. A formiguinha tornara-se um deus para as coisas daquele lugar, mas ela própria já adorava um novo Deus, o Deus do infinito que na sua plenitude não determina horizontes para as coisas do mundo. Era o Deus da formiguinha a própria idéia infinito e não há nada no universo que sobreponha a idéia infinito. Foi assim que após a guerra contra a montanha, a formiguinha seguiu infinitamente livre e feliz, sabendo que para cada obstáculo vencido há um outro que o sobrepõe; que para cada montanha vencida há uma outra a ser escalada. A montanha desintegrada, feita em grãos, percebeu que: apesar de pensar-se à parte era parte do todo, num lampejo vislumbrou todas as conexões entre as partes. Percebeu que ainda resistia em cada grão montanha a idéia rocha e que era preciso encontrar o caminho para se reconstruir montanha, para isso seria preciso que cada grão buscasse em si mesmo o traço montanha que os unisse. A formiguinha provou a relatividade dos conceitos de macro e micro, de importante e sem importância, de válido e nulo; achou o ponto exato em que tudo encontra liga para revelar Deus que é infinito, descobriu-se parte do infinito, descortinou sua parte Deus. Sentiu necessidade de comungar com as outras coisas rumo a unificação de tudo, veio-lhe dessa forma a certeza da eternidade. Foi o “Big Bang” ao revés, a contramão da Torre de Babel, o caminho para a unificação. Impossível negar que há no mundo unidade, que as coisas caminham de encontro a Deus, do Deus que se faz de todas as partes, que está em todas as partes. Oxalá chegue o dia em que cada grão-homem descobra em si sua porção Deus, então, a grande rocha humana não se sentirá montanha à parte, pois estará articulada a todas as outras coisas do universo, fazendo assim parte da idéia infinito. Talvez a formiguinha esteja enganada, mas, é, assim, fácil concluir a onipresença e a onipotência de Deus. Seja lá qual for o deus que se eleja, este não pode ser, de maneira nenhuma, inferior às idéias do eterno e do infinito. Somos todos segmentos indispensáveis de uma reta que não tem fim. Penso que alguns necessitam de um deus à parte como as coisas daquele lugar necessitaram por séculos e séculos da montanha, talvez porque esvaziar a idéia do deus à parte seja ir de encontro a um horizonte que já se acomodou aos nossos olhos. Agora, para as coisas daquele lugar, o novo deus era a formiguinha, que por sua vez, já adorava a um outro Deus. As coisas daquele lugar não sabiam ainda, que a formiguinha era tão somente mais um obstáculo, tal qual fora a montanha, por ali foi, de certa forma, proibido transcender a idéia habitual que se faz de Deus. O homem-grão perdeu a identidade de homem-montanha, mas, restou em cada homem-grão potência de homem montanha. É lenta a reconstrução da rocha humana, o homem está sendo reintegrado à paisagem só assim resgatará sua parte Deus que o liga ao universo. Tal qual a formiguinha torna-se mister repudiar toda e qualquer forma de individualidade é preciso sentir-se parte o tempo todo. Existe um ponto em que todas as coisas do universo se ligam. Não precisamos inventar deuses para justificar nossa existência, basta encontrarmos o ponto de conexão de todas as coisas que descobriremos o pequeno segmento de reta que nos identifica tornando-nos parte do infinito e do eterno. Qualquer forma de individualidade é uma negação velada à própria existência, todo aquele que se isola precisará de um deus particular que o justifique. Se o universo está regido por um único princípio, o da unidade, dar tons perversos ao processo de mundialização é ser grão que renega sua parte rocha, a unificação é tão natural quanto irreversível, caminha-se para um ponto em que todos deuses cairão por terra, ou seja, todos os obstáculos serão vencidos, sobrevivendo, enfim, apenas o Deus do eterno e do infinito. O único e verdadeiro Deus, que é superior a todos os obstáculos, que é senhor de todas as fronteiras. As ciências, desconectadas da filosofia, geraram especialistas para quase tudo e, o ser especialista, pensa-se deus nos seus domínios, e, esse, é um dos maiores empecilhos para que o homem entenda o homem. O verdadeiro saber é sólido, compacto, difícil de ser destruído. As coisas do meu lugar perderam o interesse pela universalidade de tudo, verdade! Faça uma experiência, isole as respostas de mil pessoas à seguinte pergunta: quem é você? Anote quantas das mil pessoas inquiridas responderão: eu sou humano. Ser humano é o principal traço que nos liga aos demais grãos da grande rocha humana, é a identidade que dá liga, o ponto de conexão, o traço que globaliza, que nos remete como unidade ao encontro das outras espécies, a homogeneidade, o ponto em que as substâncias melhor se ligam, logo, não é o fato de sermos racionais que nos lança de encontro ao uno (ou a Deus), pelo contrário, isso nos torna diferentes. O cosmo se faz pela igualação e não pela desigualação é o que há de mais simples, de mais comum e de menos complexo que nos liga a maior quantidade de coisas, tudo no universo encontra paridade, sempre, no ponto mais simples, nunca no mais complexo. Quanto maior a intensidade da diferença, maior o grau de isolamento. Ora, ora! Acreditar em um deus a parte é crer num deus que se faz da diferença. Nosso complexo sistema de arbítrio tende a nos tornar diferentes enquanto que a essência nos torna iguais. O homem é essencialmente bom. A maldade é deus à parte, montanha no caminho da formiguinha, um obstáculo a ser vencido. Pense bem, quantos são os déspotas? Quantos são os tiranos? Quantos são os assassinos? Para cada um que quer paz, quantos querem guerra? Para cada um que quer ordem, quantos querem desordem? Para cada deus que a humanidade criar quantos diabos existirão? O homem é mais bem do que mal, ou seja, a humanidade só encontra liga no bem, ora, se o homem não encontra a si mesmo e também as outras coisas no mal, Deus não pode ser montanha no nosso universo. Deus é o todo que se faz das partes e não parte que se faz à parte. A maldade e toda forma de diferença, apesar de também fazerem parte do todo, definitivamente, não é o que nos remete a Deus. Será preciso, novamente, uma formiguinha Cristo para “caminhar” de encontro à humanidade montanha e, do topo da nossa ignorância, pedir ao Deus maior que lance uma bola de fogo e faça desabar um novo dilúvio sobre a humanidade para que, no exato momento em tudo começar a se desintegrar, cada grão-homem perceba o ponto exato em que ele se integra às coisas do seu lugar, fazendo, então, parte do infinito e do eterno, assim morrerá o mito e revelar-se-á Deus, não aquele da nossa leitura corrente, mas, o Deus transcendente. As grandes religiões procuram ligar ou religar o homem a Deus, como se só a nossa individualidade fosse suficiente para nos inserir no que é infinito e eterno. Deus não é e nem pode ser objeto particular de religião nenhuma, comungar com Deus significa estar em perfeita harmonia com todas as coisas do universo é preciso que corpo e alma revelem um paradigma de sincronia e harmonia com as coisas do bem. Pedir uma linha direta para a revelação, ou seja, para descobrir em si mesmo sua porção Deus é ferir a ordem natural das coisas. Reacender o fogo da idade média? Colocar em cantos opostos a fé e a razão? Ai está o grande equivoco humano, dissimula-se para justificar a singularidade da dogmática e sectária fé postulada por cada religião, estas se isolam em conclusões irredutíveis, como que para acreditar ou ter fé fosse preciso engendrar incalculáveis deduções, o simples não se explica, não se justifica, porque ele é e o ser é a essência, por outro lado, a razão tem imensa dificuldade de penetrar na esfera das idéias globais, o mundo, fracionado, impede que as conexões necessárias sejam encontradas, então se multiplicam os universos e a cada instante surge um novo deus. Será preciso involuir no pensamento humano para encontrar o homem em essência. Pragmático que sou apresento-lhes um exemplo: certo dia após utilizar um copo de cerâmica, tentando colocá-lo na mesa, acidentalmente, o copo caiu partindo-se em três partes, juntei-as, unindo-as exatamente no ponto em que se partiram; logo a seguir soltei-o de uma altura maior que anterior, sendo o impacto maior, em mais partes o copo se fez, percebi que, quanto maior a altura da qual o copo caia maior a quantidade de partes e também maior a dificuldade de juntá-las, mas, apesar de ter a frente um problema cada vez mais complicado, conseguia sempre resolvê-lo isso porque a forma do copo, com todos os seus detalhes, permanecia intacta na mente. A idéia copo não estava perdida e cada caco de cerâmica conservava em si a essência copo. A humanidade ao longo de sua história foi caindo de alturas cada vez maiores e, o que é pior, perdeu a noção da sua forma primitiva, desencontrou-se da sua essência, tornou-se, assim, impossível encontrar a forma original, está sempre sobrando ou faltando um pedaço, ai está a justificativa para os universos paralelos, cada um tem um copo diferente para apresentar, esses novos copos conservam em si e por si parte do copo original, mas, será preciso encontrar o ponto exato em que cada parte se conecta a outra, não pode sobrar nem faltar. Para reencontrar a essência será preciso redescobrir a forma. Decididamente, Deus não está na individuação das coisas, está na universalidade necessária que conduz o ser à essência e as coisas à simplicidade, pois é fato que: quanto mais complexo o objeto menor é o número de conexões que ele faz com as demais coisas. Ai está a chave para a universalidade, o ser se perde, fenece se desconectado do todo, torna-se complexo, cria a infeliz ilusão de um outro universo e, embora sendo, deixa de ser; porque não consegue perceber que a complexidade se isola nela e por ela mesma, recria um copo inexistente, desencontrado da forma original. Para juntar as partes é mister ter idéia do todo. Deus não é revelado na quimera dos milagres ou na complexidade do mistério, ele revela-se no crescente das conexões que vão redescobrindo a forma. A santidade, ou não, de um homem está diretamente relacionada ao número de conexões que este consegue realizar, quanto maior o número de conexões, mais santo, quanto mais santo mais próximo de Deus (ou do todo). Deus é a forma original e a partir dele tudo é possível. Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito, Pitágoras, Zenão, Sócrates, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Agostinho, Nilton, René Descartes, Francisco de Assis..., dentre tantos outros que se dedicaram a encontrar (e encontraram) alguns desses pontos de conexões, foram, também, a seus níveis, santos, independentemente da religião que professaram ou não. Maomé, Buda e o Cristo são provas irrefutáveis de que, quanto maior o número de conexões, maior é o grau de santidade. No Cristo o número de conexões foi tão elevado que o levou a confundir-se com o todo, nos remetendo ao mito do homem que se fez Deus. O Cristo era sabedor de ter realizado todas as conexões possíveis e isso explica o mistério do homem que se fez Deus. “Eu sou o princípio o meio e o fim” e é pai, filho e espírito santo, porque é criador, criatura e é a alma da “coisa”, a força motora. Cristo se tornou Deus porque descobriu em si todos os pontos de conexões aqui, se estabelece um paradoxo, pois, santidade não passa, necessariamente, por religiosidade (faço, aqui, referência às religiões instituídas). Com relação às religiões, penso que estas indicam caminhos para descobrirmos algumas conexões, mas, às vezes estes caminhos tornam-se confusos e a guisa da montanha feita em grãos e do copo de cerâmica feito em cacos se distanciam do todo, pois se isolam na tentativa de construir um universo paralelo. No profeta Maomé, no Buda (Sakyamuni) e no Cristo o traço comum é a busca da simplicidade, é a firme intenção de descobrir em tudo o detalhe que universaliza, nesse sentido, a fé universal é a crença no todo, que é a coisa mais simples que podemos imaginar. As complexas estruturas morais e éticas das grandes religiões distanciam o homem da sua essência e mal interpretam o exemplo dos seus principais lideres espirituais, afastam-se dos pontos de conexão e supervalorizam os pontos de secção, se privam do que é mais óbvio e acham, quase sempre, na diferença o caminho do isolamento. A santidade de Maomé, Buda e do Cristo ao invés de se unirem pelo ponto mais comum se afastam pela diferença fazendo destes santos homens, parte a parte e do universo um grande mosaico. As grandes religiões afastam-se entre si, partindo-se em mil cacos nos seus seios, amiúde ouvimos falar em “mundo cristão”, “mundo islâmico” ou ainda “mundo budista” como se o mundo humano não fosse um só. Abrigamos em nós mesmos (e, talvez, seja este um dos fatores limitadores do número de conexões que conseguimos realizar) as duas dimensões: a dimensão formiga e a dimensão montanha e este choque do macro e do micro é o nosso eterno calvário. Às vezes, somos formigas ante a montanha de obstáculos que se opõe à nossa percepção, outras vezes, somos montanhas ensimesmados nos nossos orgulhos, preconceitos, arrogâncias... Não reconhecendo nas coisas menos complexas o melhor ponto de conexão. A individualidade humana é necessária mas somente à medida que ela se sabe parte de um todo qualquer, isso significa que à medida que nos conectamos a uma nova “coisa”, ganhamos também uma nova identidade, crescemos, passamos a ocupar um lugar maior no espaço (aquele físico já dissera: uma mente que se abre para uma nova idéia jamais retorna ao seu tamanho original), quero, com isso, provar que o crescimento humano caminha na direção contrária dos seres e coisas complexas, quanto mais complexo menor, quanto mais simples maior, a simplicidade total é a unidade, ela por ela; irredutível, irrepreensível, simples. Assim o macro e o micro se confundem à medida que ambos se fecham hermeticamente em suas individualidades (a rocha não se sabe areia e nem a areia se sabe rocha), pois, neste caso, nem num, nem noutro, há um ponto de conexão. Tomando esse modelo, compreendo a luta da formiguinha contra a montanha, partindo deste princípio é possível entender, por exemplo, as lutas de classes, assim é possível entender as leis fechadas, imutáveis, que acabam por se estabelecer num mundo que fluí, só assim entendo com grande precisão a intolerância que nada mais é do que a incapacidade de encontrar um novo ponto de conexão. Em síntese: é a incapacidade de crescer. O religare: religar o homem a Deus ou ao todo. O homem nasce apartado de Deus? Nasce apartado do todo? O sentimento de culpa antecede a consciência, antes mesmo de o percebermos ele (este sentimento) está lá, funcionando como uma mola propulsora nos atirando de encontro ao todo, de encontro a Deus. A culpa que reside na nossa essência é por sermos da montanha o grão; disperso, desgarrado e do copo de cerâmica o caco, é a culpa que nos conduz a religião, vou mais longe ainda, é este sagrado sentimento que nos faz crescer, pois, sem ele, não buscaríamos as conexões necessárias para ir de encontro ao todo ou a Deus. Toda parte vai de encontro ao todo, todo todo que se pensa todo é parte; porque toda parte nasce para ser todo e o todo é infinito. Resumindo: todo homem nasce para ser Deus. Nascemos para perceber e traçar relação, para ver e escolher os flancos mais apropriados para as conexões, para conectarmos e irmos descobrindo paulatinamente nossa inserção no todo, pois, embora não percebamos estamos nele inseridos, sempre estivemos inseridos, isso porque sempre fizemos parte da idéia todo, assim, o ser que é infinito e eterno antecede à consciência de o ser e o sendo, não o é. Ai valha-me Deus! Que absurdo! Afirmar que o ser que é, não é. Como pode o ser, ser e não ser ao mesmo tempo? Como cabe a contradição no lógico? Como é possível ser parte e ser todo ao mesmo tempo? Como é possível ser do tempo o próprio tempo? Do espaço o próprio espaço? _ É possível sim e é justamente neste ponto que reside o foco de resistência que faz a razão, embora sendo o próprio todo, se apartar dele, criando assim, a ilusão de um universo paralelo, porque só esta é capaz de criar a contradição, de por e contrapor, só ela é capaz de deduzir, presumir, investigar, questionar, contestar, provar..., só a razão é capaz de tornar a humana raça tão complexa, tão pequena, pois como diz aquela lei, quanto mais complexo menor, quanto mais simples maior. Só a razão pode descobrir todas conexões nos levando, assim, de encontro ao todo ou a Deus. O homem nasce Deus para descobrir-se Deus e quando isso não ocorre cria a ilusão da vida, a ilusão da morte. A ilusão de ser e não ser de pensar-se todo e ser parte, o todo não é cognoscível, o todo é síntese de idéias que fluem em direção ao infinito para residir na esfera do eterno. A razão quase sempre percebe a culpa por estar afastada do todo, apartada de Deus, por outro lado, a culpa leva à religião (instituída ou não) e a religião pretende levar a razão ao todo ou a Deus. Percebe como a vida é ilusão? Ela é como a montanha feita em grãos é copo feito em cacos ( grão querendo ser montanha, caco querendo ser copo) é a eterna busca das conexões necessárias para ser o que já é, pois, só se é quando se tem consciência de sê-lo.

Gavião Caçador
Enviado por Gavião Caçador em 12/04/2007
Código do texto: T446820