ESTRANHO ÍNTIMO
“Não me atrapalhe, você sabe que não gosto de falar enquanto dirijo.”
“Só queria falar das crianças na escola, temos que pegá-las.”
Ele olha para ela, nervoso e diz:
“E você acha que não sei disso?”
E balança negativamente a cabeça, com um ar de superioridade. Ela olha para o outro lado. O lado de fora do carro. Observa as pessoas em seus interiores. Imagina onde será que cada um vai. A senhora do carro preto, ao lado, tem pele clara, olhos grandes, cabelos ondulados, muito bem escovados, e usa muitos anéis, olha fixamente com o nariz em pé para o sinaleiro, enquanto o senhor ao seu lado, calmamente ajeita o relógio e passa suavidade. Acho que nunca conversaram, pensa Rebeca enquanto muda o olhar para si própria, no interior do carro. Ela é uma mulher de classe média, trinta e sete anos, três filhos. Tem pele branca, cabelos escuros e lisos. No momento, está acima do peso, o que a deixa extremamente descontente e envergonhada quando acompanha seu esposo em algumas situações. Ele, um homem sério, de grandes responsabilidades, ativo, inteligente, mas, de uma rispidez e autoritarismo insuportáveis. Ela não sabia bem como resgatar aquele amor que um dia sonhara, sentia insegurança e solidão. Dentro do carro, suas atitudes mostravam o reflexo de uma mulher insegura, puxava seus dedos vez por outra, cruzava os braços na pretensão de encobrir os quilos que ganhara nesse último mês, levava os dedos à boca. “Tire os dedos da boca, controle-se”, dizia Roberto, irritado. Não entendia porque aquele homem mudara tanto. Quando namoravam, ele sempre a levava ao cinema e elogiava seus cabelos, e seu nariz pequeno, costumavam disputar pela última batata frita da porção e sorriam ao fazer isso. Agora, ele estava ao seu lado, frio, sério e ela tinha medo de tocá-lo. Ultimamente, ele só a procurava nos fins de semana, logo após o jantar, quando não tinha mais nada que o interessasse na TV. Beijava-a superficialmente e, logo após, dormia sem ao menos dar uma palavra, a não ser: “Boa noite, veja se as crianças estão cobertas!”
Ela olha novamente o lado de fora do carro e encontra um casal que empurra um carrinho de materiais recicláveis. O homem mostrava cansaço, suava, devido ao peso dos materiais e levava seu filho de aproximadamente três anos, que dividia o espaço com aquelas caixas e garrafas. A mulher caminhou um pouco à frente, para pegar um papelão que estava na calçada ao lado. Magra, cabelos presos a um boné, também parecia cansada, mas sorria em direção ao marido, entregou o papelão, ele encaixou no meio de muitos outros ali, sorriu e continuaram caminhando, com os rostos cansados, mas felizes.
Já tinha uma hora dentro do carro e ela não conversara uma palavra com seu marido, tentou falar sobre o seu dia, mas ele disse que conversariam em casa. O que certamente não aconteceria, ela sabia disso. Provavelmente, ele tomaria banho, jantaria e iria se deitar; antes, ainda fosse no computador ler alguns e-mails enviados por pessoas que considerasse interessantes. Ela suspira, ele a olha e, por um momento, faz um gesto na boca como se fosse abrir um sorriso. “Como é lindo seu sorriso!”, pensa Rebeca. Foi o que fez ela apaixonar-se desde a primeira vez que o viu. “Ele está bonito, cabelos grisalhos, tem um olhar forte, será que ele me nota?”, perguntava-se, enquanto pegava um livro para ler. É inútil, não consegue concentrar-se, ela precisa conversar com ele, dizer o que sente, o que deseja. O nó na garganta a deixa aflita, imagina quais as palavras que deve usar, como deve iniciar. Ele, certamente, vai falar que não quer discutir a relação, que isso é cansativo e que não tem motivos para isso. Afinal, não estamos juntos, dormimos e acordamos juntos, vivemos sobre o mesmo teto? Você acha que se eu não gostasse de você, estaria com você agora? Deite-se e me deixe dormir.
Era sempre assim, ela não conseguia expor o que sentia, ele alterava a voz, falava num tom forte, ríspido e colocava um fim no assunto. Ela calava-se e continuava insatisfeita. Mas, hoje, era diferente, tinha que falar e tinha que ser logo, antes que as crianças estivessem no carro e começassem toda aquela discussão infantil, por quem devia ficar na janela ou quem se comportou melhor na escola. Já imagina Paulo, de onze anos, mais calado, tímido, mas implicante, dizendo para as gêmeas, Mônica e Rafaela, que sentou-se no melhor lugar. Elas, por outro lado, sentando e levantando toda hora, atropelando uma as frases da outra, até que Roberto pediria, num tom de ordem, para que eu controlasse “meus filhos”. Sim, porque, nessas ocasiões, eles sempre eram apenas meus filhos. Tenho que falar, não posso deixar para amanhã, sinto sufocar meu coração, quero um casamento de verdade, com união, carinho e cumplicidade. Que mulher sou eu, que não tenho forças para falar com meu marido. Criou coragem, suspirou fundo, encarou-o e disse: “Roberto, quero e preciso falar com você.” O freio brusco do carro, o olhar de Roberto que apenas mostrou com os olhos, erguendo as sobrancelhas, a porta da escola das crianças. Ela olhou e viu que nem percebera o tempo e o caminho passarem, presa em seus repetitivos pensamentos angustiantes e, mais uma vez, escutou a mesma frase: “Pegue as crianças, mais tarde, depois do jantar, conversaremos.”
“Certo”, pensou Rebeca e, mais uma vez, saiu do carro, cabisbaixa, olhos tristes. Olhou tudo ao redor, mordeu os lábios, segurou uma lágrima que teimava em cair, apertou os dedos com as mãos e disse: “Vamos, crianças, papai espera no carro.” E entraram, e ela, mais uma vez, observou todo o movimento que vem e vai.
Lene Dantas