Segure as pernas

Maria Vicente, conhecida como Dona Lia, estava sentindo se aproximar seu fim. Chamou seu marido, Felício, e lhe disse:

— Meu velho, o fim está chegando, e eu não posso deixar você com esses filhos todos nas suas costas. Vou pôr 2 no orfanato. Os dois mais novos, que ainda não se cuidam sozinhos.

— Minha filha, não é do meu agrado isso que você está me dizendo. Vai ficar boa, eu sei.

Passaram-se 5 dias desde esse diálogo. Dona Lia chamou uma vizinha sua e lhe pediu para conseguir duas mães de criação para Luiz e Ana. Luiz, com 8 anos, ainda não se cuidava sozinho. Ana, apenas com 5 anos, estava precisando de muito cuidado, pois, pelo aperto por que passavam, estava mostrando sinais de desnutrição.

Mocinha fez o que Dona Lia pediu. Fez pela metade. Conseguiu uma madrinha para Aninha. Uma madrinha que gostava de cuidar de suas afilhadas, dar-lhes de comer e de vestir, ensinar-lhes as letras, pôr numa escola, até a adolescência, quando elas conseguiam viver sozinhas, pelos seus próprios meios. Normalmente arranjavam um namorado, casavam e iam fazer suas vidas.

Chegou a vez de Aninha ser a mais nova afilhada de Dona Isabel.

Uma semana após a pseudo-adoção (não foi de papel passado), Dona Lia morreu. Felício providenciou um enterro humilde, num caixão feito de madeiras de caixotes de sabão, produzido pelo marceneiro da esquina, numa cova rasa do cemitério dos pobres, e saiu com Luiz e Pedro. Aninha, agora sozinha, conseguiu uma nova família. Iria fazer companhia a Dona Isabel e seus filhos, entre eles, Fátima, também com 5 anos.

Diferença entre Fátima e Aninha. A primeira, bem alimentada, era forte, viçosa, esperta. Aninha, ao contrário, magra, olhos murchos, tristeza estampada no rosto, era a cara da miséria.

“Isso mudará”, imaginou Dona Isabel. Isso mudaria, como mudou com as afilhadas que a precederam.

Primeiro, conseguir roupas decentes para ela. Dar um bom banho, acostumá-la com a higiene corporal, cuidar dos cabelos, e alimentar-se bem. Não tardaria e ela já estaria com outra aparência.

Depois, escola. Ainda nova, Aninha nunca soubera o que era escola. E Dona Isabel, apesar de sua generosidade com a adoção de crianças pobres, não tinha posses para colocá-la em escola paga. Mas conseguiria uma escola do estado.

Primeiro problema: com aquela idade, as escolas do estado não aceitavam ainda os alunos. A solução: pôr uma professora a ensinar os primeiros rabiscos a Aninha. A professora que viria ajudar Fátima se prestaria a tal fim.

Até os sete anos, Aninha apenas brincava com Fátima e aprendia com sua professora a desenvolver sua psicomotricidade.

Sete anos, e escola pública para ela. Fardamento, lancheira, lá foi Aninha para sua escola, toda contente.

Dona Isabel, por ser pobre e manter 7 filhos, precisava de costurar as roupas deles. Tinha, para isso, uma máquina Singer velha, mas boa de costura. Costurava as roupas dos filhos e ainda pegava encomenda da vizinhança, para aumentar sua renda.

Não era figurinista. Não sabia fazer modelos esmerados. Sua costura era simples, para gente humilde, como ela.

Passou-se o tempo, e Aninha foi crescendo. Passou a ajudar nos afazeres da casa, como todos os filhos de Dona Isabel. Desenvolvimento intelectual lento, em decorrência da desnutrição na primeira infância. Mas dava mostra de recuperação, pelas boas condições de alimentação e higiene então adquiridas.

Depois da volta da escola, depois do almoço, dos deveres de casa, iam Fátima e Aninha brincar, até o entardecer. Vez ou outra, ouviam a voz de Dona Isabel, no seu ateliê, a chamar:

— Fátima! Vem cá!

E repetia:

— Ô Aninha! Vem cá, menina!

Precisava ela, vez em quando, da ajuda de um ou de outro nas suas costuras. E, na ausência dos filhos maiores (que já tinham outras obrigações escolares e não ficavam muito tempo em casa), tinha que se apoiar nas duas meninas, de apenas 8 anos.

E chegavam as duas

— Pronto, Mamãe!

— Que foi, Madrinha?

Venham procurar esse madapolão que caiu detrás daquela caixa! Eu não estou achando, e preciso de costurar uma anágua para Maria.

Satisfeito o pedido, lá iam novamente as duas, a correr pelo quintal, em brincadeira de esconde-esconde, quando não estavam fazendo comidinhas para as bonecas.

Novamente o chamado de Dona Isabel:

— Aninha, vem aqui me socorrer!

— Que foi, Madrinha? — prontamente chegou Ana, a acudir ao chamamento.

— Veja essa linha, Aninha, minha visão já não está boa, e eu preciso de pôr a linha na agulha.

E lá foi Ana a enfiar a linha na agulha.

Terminou:

— Pronto, Madrinha: a linha na agulha.

— Agora segure as duas pernas e dê um nó.

— Não vou conseguir, não, Madrinha!

— Que é isso, Aninha? Tem nada de mais?

— Não sei, Madrinha!

— Vamos! Segure as duas pernas! — ordenou novamente Dona Isabel.

E lá foi Aninha, se agachando, para baixo do móvel da máquina, quase sob a cadeira onde estava sentada a madrinha.

— Que é isso, menina? Que é que está fazendo aí?

— Madrinha, a senhora mandou!

— Eu mandei o quê? — replicou Dona Isabel.

— Eu segurar as duas pernas!