FUGAZ

Não de pode calcular o quanto de escuridão pode se instalar na alma humana. Esse seria mais um dia harmonioso na rotina feliz e gostosa de nossa convivência e quando digo que a rotina pode ser algo bom é porque a vivi intensamente. Eu que nunca imaginei que fosse capaz de tal generosidade e confesso muito pouco caso fiz quando ouvi alguns escassos comentários dessa sensação de prazer em fazer sempre as mesmas coisas e, principalmente, compartilhar a companhia de uma mesma pessoa. A vida me surpreende a cada momento quando sem planejar, num momento de epifania, descubro que sou capaz de praticar os atos mais tacanhos e medíocres que pensei estar distante de realizá-los, mas que, no entanto, são possíveis de acontecer e, inclusive, com um certo prazer.A discrepância entre visões de mundo e não me enojo em dizer, nesse momento, entre personalidades e nível cultural, não impediram, imaginem quanta insanidade, a aproximação de duas almas solitárias. Talvez seja essa solidão que tenha conseguido sustentar tantas diferenças e, naqueles momentos em que a lucidez se instalou em meu pensamento, foram os pequenos detalhes que fizeram toda a diferença e mantiveram um relacionamento que, racionalmente, nunca poderia ter existido. Essa soma de insignificantes coisas e momentos, sarcasticamente ridículos, embaçava a distância que separava dois seres de mundos tão diferentes reunidos numa mesma realidade; parece que sempre vivi de passagem por todos os episódios de minha vida e, embora nessa fase eu tenha perdido um pouco a noção dos fatos, a fugacidade, ainda que disfarçada, esteve sempre devastando essa minha vida desbotada e, temporariamente, feliz. Cedo descobri que tudo na minha vida parecia acontecer depois da hora: quando o que era possível realizar ou sentir já não o era mais, é como sempre estar vivendo o que era para ter ocorrido no passado. Sempre estive um passo à frente da prática da minha existência humana, rejeitei com asco e desdenho o transcorrer normal e, talvez hipocritamente, o desenrolar natural da trajetória humana; minha alma contém sulcos profundos e devastados mesmo fora do tempo, cronologicamente falando. O contorno do meu rosto conservei, mas a alma a destruí a cada tropeço, já nasci com a alma envelhecida e anestesiada. Não sei o momento exato em que moldei esse espírito devastado, mas tenho a convicção de que não tem um eixo central; mantive-me oculta sobre fatos e sentimentos e essa não participação na minha própria existência fez a máscara sob a qual me escondo, inclusive de mim mesma.Talvez por não ter vicíos, tive que usar artimanhas de sobrevivência para não sentir tão intensamente todas as coisas contundidas que permearam minha vida, nem sei se posso chamar de existência, já que, de fato, nunca estive presente nela, embora teoricamente, assim acontecesse. Me enoja a vida em toda a sua perspectiva que tem seu fim inevitável na morte e, independente de credos religiosos e filosóficos, pouco me importa saber qual tarefa se deve cumprir aqui nesse mundo. Que me interessa afinal seguir essa trajetória acomodada e conformista? Estou em desacordo com o mundo e com a essência da alma humana, a natureza do homem é medíocre e a racionalidade e a subjetividade são tão fugazes quanto a própria existência.

Esse desabafo ocorreu na madrugada, quando acordei no meio da noite e do nada com uma sensação de insatisfação pela mediocridade dos seres, a pergunta que sempre me assombrou foi sempre uma resposta hipócrita: que significado tem a existência fugaz de um ser num contínuo e ininterrupto tempo? Talvez eu devesse apenas curtir o momento: passear, tomar banhos de sol e de mar, mas até isso não parece ter sentido, já que todas as sensações vividas são enterradas em minha carne apodrecida pela falta de vida em meu corpo, mesmo estando ainda viva; não importa em que apoio me encontro no mundo, retirando todo o significado das coisas, não me sobra nada, nem idéias claras e declaro aqui todo o meu obscurantismo por tudo que é tido como bom-senso do viver, já que me sinto excluída dessa parafernália que conforma a vida e digo: não exagerei na medida da intolerância e do desagravo de estar fazendo parte desse teatro da vida.Meu talento pela crueldade em encarar minha própria existência não é uma vingança, mas uma convicção, por mais que se participe dela, sempre se está excluída da mesma; tranquei-me aqui dentro, espichei-me e deixei a noite cair sem que eu própria a percebesse, não compreendo a vida e também isso não faz diferença, a confusão interna se contrapõe ao equilíbrio do mundo lá fora. Nem lembro mais o que eu queria contar quando comecei a escrever, só sei que não vale mais a pena, o trivial de um acontecimento pequeno fez uma reviravolta aqui dentro e o que provocou esse desabafo... já não importa, mais uma vez a fugacidade das coisas não condiz com a permanência da escuridão instalada em minha alma e pouco me importa se chove ou não, se faz frio ou calor, se a economia vai bem ou se a política vai mal, aqui dentro nada disso importa e, ironicamente e paradoxalmente, para o mundo o que se passa aqui dentro também não interessa, o que se passa entre esses dois paralelos não tem significado comum, só me resta aceitar a insignificância de minha existência nesse mundo que para mim também é insignificante.

dilma leite schmitz
Enviado por dilma leite schmitz em 29/08/2013
Código do texto: T4458164
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