A PROFESSORINHA

De origem judaica, Liliana, ou melhor, Lili, sempre fora bastante mimada pelos pais idosos. Alguns poderiam até pensar que a menina tinha seus caprichos satisfeitos por ser filha única – ledo engano. Lili tinha duas irmãs, mas não se dava bem com nenhuma delas, talvez até pela grande diferença de idade. No entanto, isso nunca foi nenhum empecilho para a caçula deixar de brigar pelo que era seu, ou pelo que acreditava ser seu. Mais de uma vez, partira para cima de uma das irmãs, porém saía sempre perdendo já que as outras eram mais altas e fortes. É bem verdade que, depois, fazia queixa ao pai quando ele chegava em casa à noite. Resultado, a irmã com quem tinha brigado, ia para o quarto de castigo enquanto a “raspinha de tacho”, ganhava o colo e o chamego do pai. As brigas entre elas só melhoraram quando as irmãs foram para a faculdade, começaram a namorar, e acabaram se “esquecendo“ da pestinha.

Na escola, Lili era motivo de preocupação para as professoras, não porque saísse batendo nas demais crianças ou porque suas notas fossem baixas, mas por conta do seu isolamento: tinha poucos amigos, e não interagia com os demais estudantes. Além disso, sua atitude durante as aulas deixava a desejar. Por ser muito inteligente, pegava a matéria com rapidez, porém o que poderia ser visto como positivo, acabava tendo o efeito contrário. Tão logo Lili entendia o que estava sendo ensinado, ficava desmotivada, abaixava a cabeça, e dormia solenemente. Quando seus pais eram chamados para conversarem com a diretora, eles sempre defendiam a filha, dizendo que nada podiam fazer. Afinal, ela não fazia bagunça ou humilhava os colegas. Que mal havia se dormia um pouquinho? Coitada! Acordava tão cedo, a pobrezinha!

Na ocasião de prestar vestibular, Lili surpreendeu a todos, inclusive a seus pais, com a sua opção: Letras. No futuro, ela queria ensinar inglês.

- Como assim? – perguntou o pai. - Você sempre foi um tanto rebelde com os seus mestres, e agora vai ser professora! – disse ele pasmo.

-É, pai. Pensei muito durante esses meses, e cheguei à conclusão de que quero seguir o magistério. Já está resolvido!

Ela foi tão categórica que o pai calou-se, porém ele ficava se perguntando como ela podia ter tanta certeza de queria ser professora, principalmente, devido à sua conduta em sala. Como ela poderia saber que essa carreira a faria feliz?

É claro que Lili passou para a universidade com ótimos resultados, contudo, quando as aulas começaram, o que se viu foi o mesmo comportamento de sempre. Sentava no fundo da sala, e dependendo da matéria ou do professor, tirava uns bons cochilos. Durante o intervalo das aulas, acordava e falava com uma ou duas amigas mais próximas. Quanto ao resto da turma, ignorava. Por isso, era vista por quase todos como “metida” ou “sebosa”, mas isso não a incomodava. Na verdade, ela parecia até gostar de causar certa estranheza nos outros. Quando percebeu que eles falavam do seu soninho reparador, resolveu arrumar outra forma de causar espanto. Dessa vez seria com penteados esdrúxulos. Por exemplo, enquanto as moças usavam um rabo de cavalo normal, que ficava nas costas, o dela ficava de um lado só da cabeça – parecia uma única maria-chiquinha. Lili se divertia muito com as caras e bocas da galera ao checar o seu visual pela manhã.

No sexto período da faculdade, Lili fez dezoito anos, e na sua família, esse número era emblemático. É lógico que o seu aniversário de doze anos fora uma ocasião muito importante. Afinal, era o seu Bat Mitzvah, isto é, a celebração do momento em que uma menina assume suas responsabilidades perante a lei ritual judaica. No entanto, agora, aos dezoito, era como se estivesse frente a um novo rito de passagem, e para seus pais, isso não tinha nada a ver com religião. Tanto suas irmãs quanto Lili ganharam um presente especial nessa data, todavia, enquanto as mais velhas ganharam uma joia, Lili ganhou um intercâmbio de seis meses nos Estados Unidos para aperfeiçoar o inglês. O fato causou ciúme nas irmãs que, embora casadas não tinham tido a mesma oportunidade que a irmã mais jovem. Além do mais, elas discordavam da maneira como os pais estavam criando a caçula, fazendo-lhe todas as vontades, e passando a mão por sua cabeça. Elas achavam que eles estavam fazendo um desserviço, não a preparando para a vida.

Quando Lili voltou de viagem, parecia estar um pouco mais madura e independente tanto que resolveu procurar emprego como professora para ter seu próprio dinheiro. Fez um currículo, tirou cópias e saiu em busca de uma chance, afinal, tinha que ganhar experiência. Ela sabia que futuramente teria que fazer provas práticas para poder se formar.

Após visitar vários cursos, achou alguém que acreditava que se deve estender a mão para quem quer trabalhar. Fez a entrevista em inglês, e passou. No começo, Lili só tinha uma turma, mas tudo bem - era seu primeiro emprego e não tinha a menor tarimba. Essa época foi bem difícil, pois teve que conciliar vários aspectos da sua vida acadêmica. Tinha as matérias da faculdade, o curso para professores de inglês em um centro binacional, aulas particulares, e seu emprego. Não havia muito tempo para namoros ou festas. Sua vida se dividia entre trabalho e estudo, mas ela andava tão encantada com a profissão que o resto era irrelevante. Ela se revelou uma ótima professora: dinâmica, criativa, e cordial com os alunos. Contudo, o que mais chamou sua própria atenção foi a enorme paciência com que lidava com os estudantes que apresentavam maior dificuldade para aprender. Quem diria!

No seu segundo semestre como professora, pegou uma turma de pessoas bem humildes. Embora fracos, eram esforçados e simpáticos. Houve quase que imediata empatia entre professora e turma. Na verdade, não havia como Lili saber, porém ela jamais iria esquecer aquele grupo. Ele seria um divisor de águas em sua vida, especialmente, por conta de três momentos marcantes.

O primeiro se deu um mês após o início das aulas. Havia um aluno, Pedro, que se destacava pela pontualidade, assiduidade e participação. Em setembro, ele passou uns dez dias sem aparecer em sala, e sem avisar o motivo da sua ausência. Quando reapareceu, Lili perguntou o que o levara a faltar, e ele respondeu:

- Lili, a coisa tava pegando lá em casa. Minha mãe tava dura, e foi aí que fui trabalhar na roça de um cara, colhendo aipim. Com o dinheirinho que ganhei, minha mãe saiu do sufoco, e pode comprar alguma comida pra nós.

Lili ficou passada. Era evidente que sabia que milhões de pessoas ao redor do mundo passavam fome, mas ela nunca vira essa realidade tão de perto. Isso fez com que começasse a rever alguns conceitos.

Sua segunda lição foi em outubro. Havia entre os alunos, dois irmãos – Alan, de dezesseis anos, e Lana, de quinze. A mãe deles gostava muito de cinema e quando os filhos nasceram, resolveu homenagear seus ídolos de Hollywood preferidos: Alan Ladd e Lana Turner. Os dois irmãos, assim como Pedro, não costumavam faltar. Foi então que, de repente, eles sumiram e ninguém sabia dizer a razão. Um dia, Lili já estava em sala há alguns minutos quando Lana chegou. Todos fizeram a maior festa porque tinham sentido muito a sua falta. Enquanto os alunos lhe davam as boas vindas, Lana só fazia sorrir timidamente. Após alguns instantes, Lili perguntou:

- Onde está o Alan? Ele está aí fora?

Os olhos da garota encheram-se de lágrimas, e ela caiu em pranto. Bem que tentava dizer algo, mas simplesmente não conseguia. A turma ficou num silêncio sepulcral, e só se ouviam os soluços de Lana. A princípio, Lili ficou apenas parada, olhando. Passados uns minutos, ela recobrou-se do susto, e fez com que Lana se sentasse. Depois, pediu a Pedro que providenciasse um copo de água. Quando a moça se acalmou, pôde enfim explicar o que acontecera com o irmão. Numa noite, brincando com amigos, Alan apostara que atravessaria a linha do trem quando este estivesse bem pertinho. Era uma espécie de prova de coragem, mas como ele já havia feito isso antes, não seria nada demais, e com certeza ele não iria amarelar. Todavia, algo fora do “script” aconteceu. Alan tropeçou em um dos trilhos, foi pego pelo trem, e seu corpo foi arremessado contra a parede de uma casa próxima. O rapaz veio a falecer em questão de minutos. Ao acabar de contar o triste fim de seu irmão, Lana voltou a chorar baixinho. Lili abraçou-a, e depois sugeriu que fosse ao banheiro para lavar o rosto e se recompor. Quando a moça saiu de sala, os alunos entreolharam-se.

- E agora, professora? – perguntou Maria dos Anjos.

- Vamos continuar corrigindo o dever de casa. E, por favor, caso Lana resolva ficar, vamos agir normalmente.

Naquele dia Lana assistiu à aula até o final, mas não voltou na semana seguinte. Além de estar chocada com a morte brutal do irmão, havia muitas lembranças dele naquela sala.

Para Lili, aquele dia foi como um soco no estômago. Nunca perdera, até então, um ente querido. Após esse incidente, ela refletiu sobre seu relacionamento com as irmãs, e resolveu procurá-las. Afinal, a vida era como uma bolha de sabão. Podia acabar a qualquer momento.

Em dezembro, Lili estava radiante porque todos os alunos tinham conseguido passar. No dia da entrega dos resultados, ela foi surpreendida com uma festa, presentes, flores e cartão. Lili foi às lágrimas. Era o seu primeiro ano de magistério, e sentia-se grata a todos. No fundo, sabia que aprendera mais com eles sobre a vida do que ensinara inglês. Dali para frente, ela só fez crescer, e deixou de ser Lili para ser Liliana.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 29/08/2013
Reeditado em 30/04/2015
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