A Cantiga Encantada
Chealsy Mount não havia dormido direito naquela noite. Mais uma vez, o mesmo pesadelo tinha visitado seu sono leve e conturbado. Sonhara com o mesmo local, a mesma hora e o mesmo dia em que sua mãe, acusada de bruxaria, fora queimada em praça pública. Naquela mesma vila do lado da floresta de Teor, para onde fugira com seu irmão sendo perseguida pelos aldeões. “Peguem os Gêmeos Ruivos!”, gritavam eles. “Não deixem que o legado da bruxa perpetue!”, diziam, correndo atrás de duas crianças inocentes.
Era um bando de hipócritas, isso sim! Aqueles aldeões que clamavam “Santuário!” eram as mesmas mulheres que visitavam sua mãe em busca de remédios que as impedissem de engravidar, para que pudessem cometer adultério sem riscos maiores; eram os mesmos homens que imploravam fortificantes e venenos para saírem vitoriosos em disputas e duelos; a mesma gentalha inútil que a pedia para ler as palmas de suas mãos, para saber com quem iam se casar ou se viveriam por muito tempo... coisas do tipo.
No entanto, aquele padre corrupto tinha que passar na frente da casa justamente no momento em que a Sra. Mount cantarolava uma música cigana em latim, língua que supostamente nenhuma mulher ou mesmo um homem que não fosse do clero deveria saber, mas sua mãe sabia! Sabia ler, escrever, falar em grego, latim e egípcio e ainda tocava a flauta de pã perfeitamente. Tudo isso gerou motivos para que aquele padre idiota a condenasse à fogueira.
Felizmente, a cigana já havia preparado a fuga para seus dois filhos ruivos e “amaldiçoados”. Enquanto ela estivesse ardendo na praça, com todos da vila assistindo, as crianças deveriam fugir pela floresta até a entrada do Bosque da Morte, onde não seriam seguidas por aqueles cristãos tolos.
Quisera apenas aqueles dois pequenos não ter dado de cara com Ladrões de Corpos no meio do caminho...
Chealsy não sabia por que o sonho sempre parava nessa parte. Ela se lembrava vivamente dos Ladrões de Corpos - rufiões malditos que escravizavam pessoas para vender no exterior - e de como ela e Cher, seu irmão, conseguiram escapar deles... Bem, na verdade, ela não se lembrava. Tudo o que lhe vinha à memória eram cenas avulsas do encontro com os Ladrões e, logo em seguida, da fuga. Lembrava-se também de ter olhado para trás e ter visto os homens caídos no chão, mortos.
Sempre faltava uma cena no meio.
- Cher... Como nós escapamos daqueles homens? – perguntou, quando os dois irmãos já se encontravam supostamente a salvo no Bosque da Morte.
O menino demorou a responder.
- Não sei...
E Chealsy acreditou nele.
Dias depois eles se separaram. Foi tudo ideia daquele estúpido do Cher! Ele achava que estariam mais seguros separados, pois a história daquela aldeia não devia demorar muito para chegar a algumas cidades próximas e dois gêmeos ruivos chamariam muita atenção andando juntos. Por isso, eles combinaram:
- Você vai para o Norte. – disse Cher, desenhando um mapa na terra – Eu vou para o Sul.
- Por quê?
- Porque sim, oras!
- Quero ir para o Sul. – Chealsy embirrou.
- Tanto faz!
- Certo. E aí?
- Aí vivemos por lá e nos encontramos aqui daqui a cinco anos.
- Você ficou louco!
- Ou podemos voltar e virar churrasco daquela gente imunda! – foi a vez de ele embirrar – A escolha é sua, Chelly!
Ele parecia decidido e, por um momento, Chealsy viu nele o semblante de um homem, apesar de seus meros 10 anos de idade. Até parecia que era o irmão mais velho! A menina ficou com tanta inveja daquela força que decidiu se fazer de forte também.
- Tá bom. Vamos fazer do seu jeito. Mas, como vamos saber o lugar onde devemos nos encontrar?
Empacaram naquela questão durante um bom tempo. Até que Cher lembrou.
- Vamos usar aquele encanto que mamãe nos ensinou.
O encanto era uma cantiga infantil que a Sra. Mount lhes havia ensinado. De acordo com ela, caso os gêmeos se perdessem um do outro, era só cantar aquela música que, no mesmo instante, eles se achariam. Na feira da aldeia sempre funcionava, mas Chealsy sabia que usar aquilo numa floresta era inútil.
- Você tem uma ideia melhor? – resmungou o caçula.
Empacaram na questão outra vez. Até que Cher encheu-se de pensar e começou a cantar a maldita da cantiga. Por não haver coisa melhor para fazer, Chealsy o acompanhou.
Foi aí que uma coisa extraordinária aconteceu.
Os cabelos ruivos como chamas dos dois irmãos começaram a brilhar feito labaredas e a mudar de cor. O vermelho virou vinho, depois púrpura, então anil e parou num azul faiscante e intenso. Tudo isso em questão de segundos. Assustados, eles olhavam um para o outro sem entender porque não conseguiam parar de cantar a cantiga e porque seus cabelos haviam mudado e porque eles sentiam como se fossem explodir, invadidos por uma força extraordinária e suprema!
Mas isso também durou questão de segundos e, como um choque elétrico passado pelo corpo dos dois, o encanto se foi da mesma forma misteriosa como havia aparecido. No mesmo instante, eles ouviram ao longe o grito de aldeões.
Era doloroso para Chealsy lembrar-se daquele momento, por mais que ela já o tivesse superado. O modo como os irmãos se olharam apavorados, temendo o que poderia acontecer, o modo como tiveram de se despedir, rapidamente e com lágrimas nos olhos, o modo como tiveram que correr pela mata fechada, cada um para um lado, sozinhos, para tentarem salvar suas vidas e quem sabe um dia se encontrarem novamente... Tudo porque eram um pouco diferentes dos outros, tudo porque não se encaixavam nos padrões. Tudo porque eram “amaldiçoados por Deus”.
Tudo por que... Ah, eram apenas crianças inocentes!
Mas exatamente cinco anos haviam se passado. E esse foi mais um motivo para Chealsy ter dormido tão mal naquela noite.
O sol que já raiava a leste surgia por detrás das colinas e das Montanhas Austrais e ele é que seria a sua bússola. A garotinha ruiva havia se tornado uma mulher forte. A vida no Sul era fria e montanhosa e a havia moldado para ser uma guerreira tão fria quanto.
Ela vestiu suas vestes de couro e a capa de veludo conquistada num duelo. Embainhou o punhal e a adaga em seu cinturão e pegou a espada longa de aço leve e corte certeiro. Finalmente estava pronta. Pronta para encontrar aquele que havia perdido há cinco anos nas terras do Norte.
O sol raiava a leste, mas Chealsy já não precisava de uma bússola. Ela conseguia ouvir ao longe, junto com todos os sons da floresta, uma melodia doce e infantil que lhe lembrava de dias calorosos. De repente, ela sentiu como se fosse explodir, invadida por uma força extraordinária e suprema. Então, naturalmente e sem explicação, ela começou a acompanhar, com a voz e com os pés, a cantiga encantada que a chamava.
Fim