A ponte
(Inspirado na dica do amigo Charles Pimenta)
Desidério se daria ao último luxo; sim, se sentaria a uma mesa de um café no shopping e pediria um expresso para degustar a essência da borra de cada gole, antes de pular da ponte.
Já havia calçado seus sapatos de couro de jacaré, lustradíssimos, os quais certamente descalçaria antes de cair fora da vida. Há muito arrastava-se no pântano pegajoso dos problemas e agora desistira por completo.
Pediu o expresso e apoiou a cabeça com expressão apática sobre as mãos cruzadas. Quem o observasse juraria que ele estava rezando. Mas não. Um oco escuro tomava conta de seus pensamentos que pareciam ter se transformado em um teatro: as luzes apagadas, o palco um breu, somente o holofote iluminado o único ator da cena: sua agonia que se transformava como um holograma dinâmico: ora Marta terminando o relacionamento, ora o chefe cobrando metas, ora os dígitos vermelhos.
“Patético”, pensou, “essa é a palavra, patético”.
E, logo em seguida, deu com os olhos num livro na cadeira ao lado.
Era um exemplar de Uma aprendizagem ou O livro do prazeres de Clarice Lispector um pouco gasto.
Desidério já o havia lido, tratava-se da história de uma tal de Lori e seu amor Ulisses.
Deu mais uma tragada no café e pegou o livro. A primeira página uma mancha aparentemente também de café onde se lia, em esferográfica Aceite como símbolo da nossa amizade e logo em seguida uma assinatura indecifrável. Mais abaixo, quase ilegível, em grafite, com letra minúscula e certamente de autor diferente da primeira, estava escrito Pág. 13.
Folheou até encontrar o número.
Havia uma frase sublinhada e com marca-texto amarelo:
“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.”
Desidério fechou o livro rapidamente. O apesar de ressoou ocupando espaço das diversas frases dos amigos, até bem intencionadas, que pipocavam em seu crânio “Que é isso, você tem uma vida pela frente”... “Calma, tudo vai dar certo”... “Você está precisando de apoio médico”...
- Apesar de... - sussurrou para si mesmo.
Abriu a primeira página novamente e a aproximou dos olhos. Notou perto da costura o nome Irani e um telefone. Deveria ele ligar? Seria a dona do livro? Teria ela passado por uma crise tal qual a que o fazia desistir de viver e por isso sublinhou o trecho? Quantos anos teria?
De repente, sua vida ganhou o pequeno fôlego da curiosidade sobre Irani. Desistiu da ponte e foi ao fumódromo do shopping folhear mais Uma Aprendizagem. Verificou vestígios de fluídos e anotações, tentou adivinhar pela cor, forma, cheiro, textura. Tinha quase certeza de uma lágrima na penúltima página e metade de uma digital perto da frase “ — Qual é o meu valor social, Ulisses? O atual, quero dizer” na página 86. A palavra valor estava circulada. Ele também se perguntou qual era o seu valor social.
Com o cigarro dependurado no canto da boca, pegou e celular e digitou o número.
- Alô! – respondeu uma voz grave do outro lado.
- Por gentileza, eu poderia falar com a Irani?
- É ele, O Irani. – disse a voz frisando o artigo masculino.
- ...
- Pois, não! Quem está falando?
- Meu nome é Desidério. Acho que você esqueceu um livro no café do Shopping. Um livro da Clarice Lispector.
- Não fui eu, meu caro. Não estive no shopping, muito menos num café.
-...
- Mais alguma coisa?
- É Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Tinha o seu telefone lá.
- Ah, sim. Eu já tive esse livro e o vendi a um sebo.
- Foi você quem sublinhou o trecho da página 13?
- Como?
- O trecho em que Ulisses fala que devemos viver apesar de.
- Não fui eu não, amigo. Não costumo escrever em livros, justamente porque os vendo depois. Valoriza mais.
Desidério pensou na palavra “valor”.
- Então você também não circulou a palavra “valor”, né?
A voz agora se impacientava.
- Não. Certamente que não. Olha, estou ocupado. Posso ajudar em mais alguma coisa?
- Não, obrigado. Na verdade, sim. Lembra do sebo para o qual vendeu o livro?
- Só vendo para o sebo Êxodus.
- Ok, desculpa qualquer coisa. Muito obrigado.
A caminhada até o Sebo não durou vinte minutos. O pensamento de Desidério agora não era um holofote, mas um palco iluminado no qual sua mente dirigia diversas peças possíveis. Ou estaria ela lhe pregando um peça?
***
Uma mulher clara, baixa, de cabelos castanhos ao ombro, nariz arrebitado e vermelho, espirrava quando ele chegou.
- Pois não? Desculpa, não me acostumo com essa poeira. Sou extremamente alérgica.
- Por acaso você se lembraria da pessoa para quem vendeu este livro?
A mulher pegou o livro, examinou-o como uma arqueóloga. Virou-o, abriu paginas,
- Não o vendi para ninguém. Peguei-o para mim. Acho que o esqueci no café.
- Isso! – Disse Desidério com um sorriso de achado. Qual o seu nome? O meu é Desidério. Prazer.
- Me chamo Camila. Prazer.
Os dois ficaram se encarando um tempo, os olhos tão entrelaçados quanto as mãos.
- Poderia me dizer, Camila, porque sublinhou esta frase aqui... na página 13. Quero dizer, foi você?
- Sim, fui eu – disse ruborizada -, por quê?
- Se não se importa, gostaria de saber o motivo.
Ela o encarava, espantada. Tão inusitado quanto o fato de aquele homem entrar e fazer a pergunta estranha foi a resposta que ela deu:
- Estou morrendo. Tenho uma doença rara e fatal. Precisava de uma frase que me desse o mínimo sentido. Vi que tenho que morrer apesar de.
- E eu estava prestes a me matar.
O abraço foi recíproco e imediato. Uma junção de medos, dúvidas, agonias.
Não se despediram. Ele fez menção de devolver o livro e ela retornou com um gesto de recusa ou fique-para-você.
***
Do alto da ponte, Desidério observava a enxurrada de carros, caminhões e motos. Pensou na sina dos motoristas e passageiros, nos sinais, nas curvas perigosas e nos infindáveis destinos. Começou a arrancar as páginas do livro e jogá-las ao ar: algumas voando além da via, outras caindo sobre os veículos e uma parte sobre a ponte. Quem sabe algum pescador fisgaria uma? Uma folha, um trecho, uma palavra...
Depois, ele foi viver... apesar de.