Um Negro

- Na minha época era tão mais difícil filho! E eu não tinha nada, tudo que eu consegui foi por me curvar a eles. Eu nunca soube o que foi a abolição de fato, nunca soube! Eu me passei por cristão mas eu só ia a igreja de Santa Bárbara e chorava em todas as missas porque eu lembrava do atabaque soando o barravento de Mãe Insã!

- Só agora eu vejo que ao me embranquecer como eu quis fazer, eu larguei de mão minha vida e ela me largou também... Ah meu filho! Eu chorei duas vezes quando vi você abraçar a nossa religião de Orixá, a nossa raiz da capoeira, do batuque e a luta pelo direito de praticar tudo que é nosso... Ah, eu chorei duas vezes! Uma por tentar te impedir e outra por saber que eu não tive a sua coragem... Você não conhece seu pai!

- Seu pai que se deixou moldar e ficou racista, que se olhava no espelho e não via mais quem era! Que desdenhava de quem era como ele deveria ser e lambia as botas de quem o fez ficar assim. Seu pai que achou que esse era o caminho mais fácil pra uma vida digna, pra ter um trabalho e sustentar a família, botar você grande... Tu mesmo se botou grande do seu jeito, e nesse leito eu agradeço a Zambi por tu não ter saído a mim! Sua mãe chorava com a minha desgraça. Com a nossa desgraça. Fiz de nossa vida muita coisa menos digna!

- Essa é minha última chance de te pedir perdão filho, sei o que me espera mas preciso disso antes chegar a hora, Pai Omolu já está a caminho, é ora de cortar o cordão...

- Pai...

- Não filho, só me perdoa e saiba que seu pai tem muito orgulho do seu orgulho de ser o que é... Você é gente!

- Não pai...

- Atôtô filho! Apenas a benção...

- A benção pai.

- Oxalá te abençoa meu filho...

Ele disse “Deus te abençoa” muita vez. Nunca de coração como agora.

Anne Dourado
Enviado por Anne Dourado em 21/08/2013
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