Mata a sogra e pede desculpas à patroa
(Possível manchete de jornal)
 
A sogra sofria de insônia, ele não. Dormia tanto e tão bem que até se esquecera de que a velha era insone. E que ela levantava-se várias vezes por noite.
 
A velhinha saía do quarto dos fundos com o chinelo de pano lustrando as tábuas vermelhas do assoalho do longo corredor. Fazia uma breve parada diante da porta fechada do quarto do genro e da filha. Chegava um ouvido para  escutar melhor o ronco forte dele intercalado com o suave ronronar da mulher. Uma monótona sinfonia de poucas notas executada em estranho dueto. Às vezes não resistia e abria ligeiramente a porta. Tentava vislumbrar no escuro marido e mulher adormecidos bunda com bunda sobre o colchão de crina na cama larga de madeira maciça.
 
Após a pausa, a velha esboçava um discreto sorriso, meneava a cabeça e seguia adiante.

Na sala puxava silenciosamente o ferrolho das escuras da janela. Atrás da vidraça punha-se a contemplar a rua deserta. Raro um passante. Talvez um bêbado que perdera a hora e voltava para a casa cercando gansos no meio da via e esfolando o bico dos sapatos no macadame.
 
Quando pensava que tinha reencontrado o sono, fechava as escuras com cuidado e voltava para o quarto. No corredor parava novamente para ouvir o ronco do sono pesado do genro e a respiração profunda da filha. Provavelmente nem se haviam mexido e continuavam com as bundas coladas uma na outra.
 
No quarto deitava-se de costas e cerrava os olhos esperando que o sono viesse de verdade. Rolava-se para um lado. Depois para o outro. De costas de novo. O pensamento ia longe e voltava para perto. Lembranças da infância e da juventude. E das conversas de ontem com as vizinhas de cerca. Só o sono não vinha. Levantava-se.
 
Fazia tudo de novo. A paradinha na porta do quarto do casal. Abrir as escuras com cuidado para não fazer barulho, e esperar.

Com o dia quase raiando, o leiteiro deixava duas garrafas cheias na varanda e levava duas vazias impecavelmente limpas. A velha não abria a porta para recolher o leite. Tarefa da filha ao amanhecer – mãe, não apanhe friagem, deixe que eu recolha o leite. O leiteiro acenava, subia na carrocinha e continuava seu caminho. Ela retornava para o quarto em busca do sono perdido ou esquecido.

 
Certa madrugada, ainda distante dos primeiros raios de sol, e depois que o adiantado leiteiro se foi, ela sentiu incontrolável vontade de beber do leite fresco. Poderia ser bom para conciliar o sono. Descumprindo deliberadamente a recomendação da filha, escancarou a porta e saiu para a varanda apanhar as garrafas. Um vento encanado empurrou a porta, que bateu estrondosamente no batente da parede de madeira, retrocedeu e permaneceu um palmo entreaberta. O gato que dormia na área pulou para o quintal do vizinho, alvoroçando o cachorro.
 
O genro acordou assustado. A pancada de madeiras e o cachorro latindo. Tem ladrão rondando a casa.
 
Sonolento, enfiou os pés nos chinelos, apanhou a espingarda de caça calibre 12 pendurada pela bandoleira de couro num prego fixado na parede que fazia canto com a porta do quarto, e foi para o corredor. O coração por pouco não saltou pela boca ao ver os restos da luz da lua cheia entrando timidamente pelo vão da porta entreaberta. Ajeitou a coronha no ombro direito, puxou um dos cães. Com a arma pronta para disparar, começou a caminhar pé ante pé em direção à saída.

A velha apanhou o leite no último degrau da escada da varanda. Voltou e empurrou devagar a porta de entrada temendo fazer ruído. O menor que fosse. Uma garrafa prensada ao corpo pelo antebraço esquerdo e outra na mão. A mão direita na maçaneta. Por fim, a porta inteiramente aberta permitia que o luar desmaiasse no limiar da sala e o vulto da anciã surgisse sutilmente desenhado na contraluz.
 
Um vulto. O medo. O coração acelerado. Um dedo no gatilho e o tiro disparado sem pensar.
 
A chumbada atingiu em cheio o peito da velha senhora. O frágil corpo foi lançado de costas além da escada da varanda. O cachorro parou de latir. O bairro inteiro acordou com o trovão da 12. Leite vazando das garrafas deitadas no chão. A mulher apressou-se para o corredor. O que foi?
 
- Atirei num ladrão. Tinha arrombado a porta, não ouviu o barulho? Já estava entrando quando o surpreendi.
 
Ele, com o segundo cão da espingarda engatilhado, saiu para conferir o estrago. Ela o seguiu, mas estacou no umbral.
 
- Meu Deus! Matei sua mãe. Desculpe, meu bem...


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N. do A. – Na ilustração, Natureza Morta com Garrafa de Leite de Tamara De Lempicka.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 15/08/2013
Reeditado em 19/08/2021
Código do texto: T4435258
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