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Estou deitado na rede, em um canto escuro, longe do alcance de qualquer interesse. Um grupo de amigos conversa animadamente em frente ao bar do hostel onde estávamos hospedados. Pessoas bonitas, interessantes, papo legal. A cada cerveja mais, mais animada a conversa. Vozes mais altas. Risos estridentes. E os papos picantes. Conversavam de diversos temas sobre sexo. Posições, orgasmos, freqüência. Um rapaz homossexual discursava efusivamente sobre os variados tamanhos de pau. Muito pequeno, pequeno, médio pequeno, Golias, e por aí vai. Dizia ainda ser capaz de calcular o tamanho olhando apenas para as orelhas e o tamanho do dente canino. Que combinação estranha. Não fiquei curioso para saber se ele conseguiria adivinhar o tamanho do meu.
Preciso dormir, porém uma terrível insônia me aflige. O tédio da escuridão do quarto me assusta. Por isso fico observando a cena à distância. Para os mais generosos, seria um vouyeur. Um ermitão stalker, para os menos. Pontos de vista e conflitos do discurso à parte, continuo no meu canto, acompanhando a conversa. Poderia me juntar a eles, certamente. Não sou tímido e me enturmo facilmente. Hoje, no entanto, meu lugar não é nas luzes, com pessoas. É no escuro. Solitário. Silencioso. Nada há de triste nisso, como pode parecer. É apenas o lugar ao qual os insones pertencem. Descobri logo na primeira noite em que não consegui dormir. Ao perceber minha situação, resolvi fazer qualquer coisa que não alternar entre olhar o vazio de um teto e de uma parede. Um bar seria meu refúgio. Nem cinco minutos sentado na mesa e uma tremenda sonolência me chega. Daquelas que tira o entretenimento de qualquer coisa que aquele lugar poderia oferecer, dos goles de cerveja às trocas de olhares com a moça bonita. Nem com esta sentada à minha frente, com um sorriso profissional de quem sabe oscilar entre a inocência e a perversão. Sorriso que logo se transformou em desapontamento ao ser recebido com um alto e incontrolável bocejo. Ela se foi e eu nada tinha a fazer ali. Pedi a conta e parti. De volta ao escuro do quarto, a dona Insônia novamente me bate à porta. Quer tirar satisfações. Irritada, ciumenta, não aceita esse tipo de traição. Se coloque em seu lugar, disse. Não tenho escolha. Vou obedecer.
Resolveram ir para um pub. “Curtir um bom e velho rock n’ roll”, com todo o anacronismo da expressão presente em alto e bom som. Algum deles disse que o esperassem enquanto ia buscar algumas coisinhas básicas, como cigarros, dinheiro, camisinha e boné. Não fui e nem esperava ser convidado. Partiram e me deixaram na nostalgia de contemplar o palco sem seus atores. Estrelava apenas o faxineiro, em sua brilhante atuação em se desfazer dos vestígios do espetáculo anterior. O último show termina. Bato palmas. O faxineiro percebe a minha presença e disfarço meu estranho ato fingindo que tento tirar algo muito bem preso sabe-se lá onde, de modo que pareça normal bater minhas mãos umas nas outras do nada. Não devo ter tido sucesso. Depois pergunto a ele.
Chegou a hora de deixar o teatro. Levanto-me da poltrona, mas não tenho aonde ir. O sono me passa longe e estou com medo de encontrar na cama a dona da minha coleira ainda com raiva pela travessura da noite anterior. Preciso ficar no meu lugar: o escuro. Saio pelo escuro das ruas. Tomo cuidado para não ficar perto das luzes. Ali estou em perigo. Ando sem saber o porquê. Talvez queira algo menos vazio que paredes e tetos. Vejo um vulto andando sorrateiramente, caminhando em minha direção. Sigo meu rumo da mesma forma. Não tenho medo. O vulto me aborda e se revela um homem. Quer meu celular, meu dinheiro. Respondo que não tenho nada ali, a não ser uma danada de insônia, mas que se quisesse poderia ficar com as roupas surradas que vestia. A escuridão da noite protegeria minha nudez. O homem não gosta do que ouve. Me empurra irritado e se vai a amaldiçoar. Coitado. Não tem o que fazer. Percebeu que naquela situação eu estava em posição superior. Ele queria terminar logo o turno do serviço, queria poder dormir. O cansaço estava estampado em seu corpo, como tatuagem. Não importava o quanto quisesse parecer ameaçador, o desenho de suas pupilas caídas e de sua coluna curvada era impossível de apagar. Enquanto isso, eu estava muito bem acordado, disposto, seguro. A insônia não deixa os olhos caírem, a coluna se curvar. Ela me disse que eu pertencia ao escuro. E o homem o que mais quer é uma luz em sua vida amargurada.
Continuo a vagar não sei por quanto tempo, nem por quais caminhos. Talvez eu tenha rodado o quarteirão várias vezes até parar de frente ao hostel novamente. Sinal de que minha jornada deveria acabar, que me chamam para o quarto. Nos primeiros degraus rumo ao andar de cima ouço uma agitada movimentação. Os amigos-descolados estão de volta. Agora, pelo jeito, amigos-descolados-totalmente-chapados. Volto para observar. É incrível o estrago que a noite e o álcool podem fazer. Levam à devassidão como ninguém mais. Uma das moças está com o sapato de salto na mão, mas não me parecia possível que ela cambaleasse mais mesmo com eles nos pés. O rapaz-medidor-de-perus corre para o banheiro com a urgência de quem precisa colocar algo para fora. Ou para dentro, quem sabe. Um moço jovem, desconhecido, de avantajadas orelhas de abano, o segue com muita pressa e volúpia. A linda menina loira está aos beijos-picantes com um tatuado-forte-barbudo. Droga. Ela é tão linda que sempre que penso nela coloco esse adjetivo na frente. Na peça do início da noite ela era a atriz principal. E confesso que meus olhos já acompanhavam toda aquela beleza desde o início da estadia. Sinto uma pontada de ciúmes. Ela o pega pela mão e com calma guia para a escuridão da cozinha. Desgraçado. Não tenho nada a apreciar naquele espetáculo dantesco. Ali só faz sentido participar, não assistir. Subo as escadas. Olho a porta do quarto, mas ainda tenho medo da dona Insônia. Não quero me render. Vou para a varanda apreciar o céu da noite, com a esperança de fazê-la desistir de mim com essa teimosia. Aprecio as cinzentas nuvens passarem lentamente tão baixo, no limite tênue para se tornarem neblina. A lua está ausente. O vazio do céu é lindo. Sinto-me em paz.
Até que ouço passos. Um perfume natural invade minhas narinas. A linda mulher sobe calmamente as escadas. Usa um vestido preto com detalhes vermelhos. Os cabelos loiros caem soltos pelos seus ombros. Anda com uma postura que álcool nenhum é capaz de derrubar. Exala poder. A sensualidade é estonteante. Ainda maior quando ela para. Calmamente, coloca a calcinha que carregava nas mãos. Uma perna, depois a outra. Ajeita o cabelo. Ela percebe a minha presença. Com aqueles olhos azuis, encara diretamente os meus. Estou petrificado. Posso escrever facilmente um conto sobre uma pobre vítima dos olhos da Medusa. Um leve sorriso aparece no seu rosto. Irônico. Parece dizer “gostaria de tirá-la também?”. Tenho convicção de que aquilo foi de propósito. Ela continua a subir as escadas. Vem em minha direção. A lua aparece por entre as nuvens e ilumina com força todo aquele ambiente. Estou desprotegido. E isso me desperta um instinto de sobrevivência. Percebo muito bem como ela é. Perigosa. Perigosíssima. Naquele jogo, é predadora. Eu, frágil presa. Pode me tirar muito mais que qualquer assaltante cansado. Sagaz, espreita-me para ser o próximo do cardápio a experimentar. Prazer que tem um preço alto. O barbudo-forte-tatuado provavelmente está a imaginar quão lindos serão os primeiros dias do namoro entre os dois. Preciso fazer alguma coisa. E faço. Fujo.
Nem olho para trás. Tampouco sinto vergonha. Entro no quarto e tranco a porta. Nada mais faço além de me deitar. Um forte remorso me acomete. Ah, Insônia, o que fiz? Como fui injusto com você. Só agora percebo que não queria nada mais que me proteger. Ela vem. Não mais irritada e ciumenta, e sim calma, confortadora. “Está perdoado, querido”. Fecho os olhos. O sono não tem calma nenhuma para me agarrar e matar a saudade. Durmo em paz, com um alívio imenso, só possível após uma insônia daquelas. Obrigado mais uma vez, meu amor.