O POTE
- Nunca mexa neste pote - dizia o pai com o pote na mão - mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências! - escutou várias vezes esta frase quando era garoto. O pai fazia a recomendação com tal seriedade, que com o passar do tempo, nem perto do pote ele passava. Não foram poucas as vezes que olhava para aquele pote com raiva; por que não podia pegá-lo? Que implicância era essa de seu pai em relação a ele e aquele objeto? Um pote comum, de louça branca, que não tinha nada de mais? Restou disso tudo uma espécie de trauma, bem como, uma curiosidade infinita: o que lhe aconteceria, afinal, se o desobedecesse e pegasse em suas mãos a misteriosa peça? Lembrava da voz do progenitor basicamente por causa da recomendação do pote; não era de falar muito,o velho, era, até mesmo, um homem solitário. Lembrava do pai sentado na sala, só, fumando seu cachimbo. Ficava horas absorto observando a fumaça azulada; no que estaria pensando? O tempo passou, casou, teve filhos, o velho pai se foi... e ele nunca tocou naquele pote. O pote estava agora em sua casa, jazendo no fundo de um armário, embrulhado em papel. Sua esposa embrulhou a peça rapidamente, pois ele não queria saber daquilo, afinal, não era para ficar longe? Sempre fora obediente ao velho pai, e embora não soubesse o 'por que', respeitava seu pedido, ou ordem, nem sabia direito. A verdade é que aquilo sempre lhe incomodou, não era possível depois desse tempo todo ainda remoer esse assunto, mas ele remoía. Um dia, no trabalho, pensava no pote quando algo lhe ocorreu: seu pai dizia - Nunca mexa nesse pote, mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências. - Ora, já não era um menino! Seu pai há muito tempo já não estava neste mundo! Sim, arcaria com as conseqüências! Estava decidido, tão logo chegasse em casa, pegaria o pote e, mais que isto, o colocaria no centro da mesa de jantar como uma espécie de troféu pela sua ousadia. Quando chegou em casa estava nervoso, cumprimentou rapidamente a mulher, os filhos e foi ao seu quarto, trancando-se à chave para ficar mais à vontade com seus fantasmas. Abriu o armário e esticou seu braço até pegar o pote embrulhado atrás de algumas blusas de lã dobradas. Tremia. Sentou-se na cama com o maior mistério de sua infância nas mãos, procurou não pensar no velho, abriu o embrulho e quando retirou a tampa do pote viu um papelzinho dobrado, amarelado pelo tempo... Seus olhos ficaram paralisados por um momento. Então, com calma ele abriu o bilhete, ali se lia: VOCÊ ESTÁ LIVRE! Reconheceu a caligrafia do pai, e naquele momento sentiu que livrava-se do imenso peso que sempre o acompanhara em sua existência.Faziam, ambos, pai e filho, uma reconciliação muda, através justamente da transgressão, mesmo tardia, da ordem dada. Aquelas três palavras naquele sucinto bilhete eram a chave para todo o seu passado, e... para seu futuro. - Então... - pensou ele - meu pai era um brincalhão? dado a enigmas? Um homem misterioso e com um lado lúdico que nunca conheci? Ou, ainda, quem sabe, um sábio? Droga, por que não abri este pote antes! - se emocionou. Sim, arcaria com as conseqüências de ser livre,segundo aquela zelosa recomendação, e com a responsabilidade que a verdadeira liberdade traz. A partir desta descoberta sua vida mudou. Estava mais alegre, tranqüilo... e desenvolveu o hábito de ao deitar, pensar em sua infância, no relacionamento distante com o pai; lembrar de conversas, procurar outros indícios, metáforas, qualquer coisa... enfim, garimpar outras pequenas pistas que o velho tenha deixado, tal qual pequenas migalhas de pão em uma floresta, para que o filho, talvez um dia, encontrasse o caminho até seu duro, solitário, misterioso, mas nunca fechado coração...