Negão

Animais de estimação são mais que bichos pelos quais temos que zelar. São companheiros com quem construímos histórias. E esta, eu jamais esquecerei.

Eu tinha treze anos quando voltava da escola e passei por um monte de lixo empilhado na minha rua quando tomei um susto ao ver que das sacolas, saiu um cãozinho preto que mal colocou a cabeça pra fora do topo do lixo e, ao tentar sair, rolou de lá até o chão.

Eu esperava que ele tivesse se machucado, mas ele só ficou sentado no chão com a cabeça inclinada pro lado e me encarando com um inocente olhar como se dissesse “o que foi humana? Nunca viu um cão cair de um monte de lixo?”.

Ri e até fiz um carinho nele com o pé. Infelizmente ele me seguiu e eu não sabia o que fazer com ele. Apesar da sujeira, ele parecia saudável. Uma criaturinha daquelas que mal conseguia andar e me olhava com olhos tão inocentes merecia um lar. E eu sempre quis ter um bicho de estimação, apesar de nunca contar isto aos meus pais. Precisei de muita coragem e falar pra eles que queria adotá-lo .

— Livia um cão exige muita responsabilidade. Tem que dar banho, levar pra passear, pra ser vacinado... — dizia o meu pai, já irritado.

— Pai eu prometo que farei tudo isto.

— Fará? É ruim, hein! Sua mãe tem que brigar contigo pra você arrumar o seu quarto.

— Mãe, eu prometo fazer tudo que a senhora precisar. Juro por Deus. Fala pro pai deixar... — implorei.

— Filha um gato não é melhor? Dá menos trabalho e é menos perigoso...

— Não, mãe. Eu quero este cachorro.

— Mas minha filha... você achou este cão na rua bem no meio do lixo... e se ele for de alguém? — disse a minha mãe, tentando mediar a situação.

— Se ele for, prometo que devolvo. Mas fala pro pai deixar...

Minha mãe suspirou e trocou olhares com o meu pai. Gente adulta e casada não deve precisar se comunicar falando, pois bastou uns segundos de olhar e meu pai também suspirou olhando pro alto e indo jantar, enquanto dizia:

— Então pode ficar. Mas a primeira sujeira que eu encontrar e este bicho vai ter que procurar outro lugar!

E assim meus pais deixaram que eu tivesse o meu primeiro animal de estimação. No mesmo dia que o adotei, dei um banho nele no quintal e vi que ele tinha um pelo escuro e macio que ficava muito bonito quando limpo. Simpaticamente o apelidei de Neguinho e a minha mãe deu risada enquanto o meu pai preferiu nem comentar.

***

No começo foi difícil me acostumar com a nova jornada diária. Agora além de ir pra escola e fazer as lições, eu arrumava e limpava o meu quarto e cumpria todas as tarefas domésticas que a minha mãe pedia. Em troca, ela me dava dinheiro pra comprar as coisas pro Neguinho como coleira, ração e potes para água e comida. A casinha era cara então improvisei uma com papelão e uns tapetes nos fundos da minha casa. Depois de algum tempo, as tarefas viraram rotina pra mim.

Engraçado é que o meu cãozinho parecia ver o cuidado que eu tinha para mantê-lo e evitava problemas também. Neguinho não era um destes cães que sai por aí mordendo calçados ou sujando a casa. Uma coisa que eu ficava impressionada com ele é que quando ele sentia vontade de fazer suas necessidades, aproveitava que o portão de casa vivia encostado e dava um jeito de forçá-lo até abrir e fazia o que precisava no mato ou perto das árvores. Ele também não era um cão que avançava em visitas ou ficava latindo à noite. E sempre que eu saía, ele me acompanhava até a entrada da rua e depois voltava. Nunca precisei dar bronca nele nem procurá-lo por ele fugir de casa. Até o meu vizinho que era dono de uma cadela da raça Rough Collie adestrada ficava impressionado com a obediência e beleza do meu cachorrinho.

Com tanto amor, carinho e dedicação Neguinho depois de uns meses cresceu e surpreendeu a todos. Antes ele tinha um rostinho meigo e parecia ser um cão como qualquer outro. Agora o seu pelo parecia ter um brilho, o formato de seu rosto era similar ao de um pastor alemão e era tão grande que quando ele colocava as patas dianteiras em mim, quase me derrubava. Sem contar o latido dele que parecia um rugido.

Um dia a minha tia avó Gertrudes — que tinha sete gatos e cheirava como tal — foi visitar a minha casa e viu o meu cão. Nós o apresentamos a ela e o comentário que ela fez foi:

— Neguinho? Um cão enorme destes? Tá mais pra Negão!

Rimos muito, contudo não deixamos de concordar. Ele já não era mais um cãozinho de rua. Era o meu cão.

***

Um dia quase tudo foi por água abaixo.

O meu pai havia ido pra uma festa da empresa e havia chegado bêbado em casa. No escuro acabou pisando no meu cachorro e foi mordido. Meu pai quis matá-lo e minha mãe teve que contê-lo enquanto ele gritava:

— Amanhã eu quero este cão fora da minha casa! Eu não vou sustentar um bicho que me morde!

Eu o abracei e com muito medo, vi a marca da pisada do meu pai na pata traseira dele. Olhei para o cantinho dele e notei que o tapete estava fora do lugar enquanto o tapete que a minha mãe colocava na entrada dos fundos estava desarrumado. Como eles brigaram perto dele, deu pra entender: o meu cão estava esperando o meu pai porque já era tarde e estava preocupado, assim como eu e minha mãe. E pela força que o pai pisara nele, havia mordido-o só para se proteger.

Depois deste dia, o meu cão passou a dormir no meu quarto. Mais por opção dele do que minha. Ele também evitava ficar na vista do meu pai, que por sua vez havia mudado de ideia e não o expulsou apesar de sempre ter algo pra reclamar a respeito dele. Uma das coisas que ele mais dizia era:

— Cães são bichos perigosos. Quando atacam uma pessoa, não param mais.

Eu ignorava. E um dia, Negão provou que eu estava certa.

Eu estava indo fazer compras quando um Pit Bull de um vizinho avançou pra cima de mim. O Negão estava do meu lado e atacou o animal. O meu cão quase matou o outro. Quando o dono do Pit Bull separou os dois, meu cão ia atacá-lo quando eu gritei:

— Chega!

E ele parou na hora.

Neste dia, vi a agressividade da qual meu pai falara só que de um jeito diferente. Era o desejo de proteger a si e a quem fosse importante pra ele. Queria que o meu pai o visse assim um dia.

Infelizmente, meu pai viu uns meses depois da pior forma.

***

Eu estava na sala assistindo a TV quando meu pai, chegando do trabalho, estava sendo assaltado por um adolescente. Pro azar do bandido, meu pai já havia aberto o portão de casa e o meu cão aproveitou seu pelo escuro pra se esconder nas sombras e atacar o bandido com uma mordida no braço. Ouvi um som de um tiro e corri pra fora enquanto o meu pai espancava o moleque e os vizinhos apareciam pra apartar a briga.

— Eu tô bem! Eu tô bem. Ele deu um tiro que não pegou em mim e largou a arma. Então avancei nele! — disse o meu pai, assustado.

— E a bala acertou em quem? — perguntou um dos meus vizinhos.

Me virei pra olhar, temendo estar certa. Infelizmente, vi meu cão deitado no chão, choramingando sobre uma poça de sangue. Corri até ele e coloquei a mão eu seu corpo e, assustada senti a sua respiração enfraquecer, vacilar...

***

Depois que tudo foi resolvido com a polícia, meu pai havia me informado que ele não resistiu a caminho do veterinário. Chorei o dia seguinte todo e ao anoitecer, nós o enterramos em um terreno baldio. Meu pai havia improvisado um caixão com papelão e saco de lixo. Só que o meu tato ainda estava sensível e quando o toquei, em vez de sentir a textura do papelão, jurei ter sentido o pelo dele... e chorei mais.

Hoje o meu vizinho dono da Collie me chamou pra uma visita e me explicou antes de eu entrar:

— Quando você deixava o seu cão sair na rua, era um dos fins de semana que abro a minha casa para um churrasco. Ele encontrava a minha Lassie e como pode ver...

E vi a cachorra dele com três filhotes, sendo um deles um cãozinho preto. Comecei a chorar enquanto dizia:

— Ah Negão... você não me abandonou, não foi?

Davi Paiva
Enviado por Davi Paiva em 04/08/2013
Código do texto: T4418983
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