Era apenas um filme...
Uma língua gorda enroscava-se nos cantos da boca da mulher. As palavras lhe saíam indecifráveis. Entre uma e outra delas, a velha expulsava da boca sementes sei lá de quê. A fruta ignorada parecia-lhe ácida demais. Sua face mugangava como se gostasse desgostando do que comia. O crescente que essa imagem humana ia fazendo, chamava uma pequena multidão para ouvi-la, mesmo que não entendesse seu discurso. Agônica criatura queria fazer-se clara ante os ouvidos alheios. Esforçava-se para isso.
Na geografia do cenário onde apelava incompreendidamente, bem no centro do círculo onde punha seu corpo para clamar, havia um grande caixão preto, fechado, amarrado por duas cordas grossas e de cores diferentes. Algo havia nele. Ela batia-o com uma pequena vara que tinha entre os dedos. Gritava, pulava, chorava, sorria. Havia ali uma velha mulher atônita a tentar expulsar emoções abafadas. Um interessante episódio que bem podia ser chamado teatral.
Um senhor robusto, bem vestido em alvíssimo linho branco, dirigiu-lhe a palavra. A velha calou-se por segundos, estirou o braço direito na direção do moço como se quisesse mostrar-lhe algo no seu chapéu ou o mesmo. Seu gesto evadiu-se desentendido.
-A senhora o que vê neste chapéu?
A velha, sem lhe responder, continuou a enroscar a língua, sem querer deixar cair o resto das sementes da fruta e um pedaço de fumo de rolo que mascava satisfeita.
Outros se achegaram a ela. O caixão preto semelhante a um féretro continuava se aquecendo com o sol cáustico de perto do meio-dia. A tabica chegava até ele com a força da ira da mão direita da velha.
-Dona moça, o que quer nos dizer?
O padre tentou decifrar seu desejo: chegar perto dela. Sendo empurrado com força, desistiu. Riu-se e saiu dali para não mais voltar. O círculo de gente curiosa crescia assustadoramente. Quem estava nos seus confins já não mais ouvia os gritos daquele ser estranho.
Quando já passava das duas da tarde, tendo ela suas vestes estranhas ensopadas de suor, um cheiro forte saído de suas axilas, olhou para o caixão, ajoelhou-se ao seu lado, pondo as mãos na corda mais escura e fez sinal para desatar o nó cego de há muito feito. Soltou a tabica no chão, limpou as mãos no tecido da saia, olhou para os quatro cantos da praça e decidiu desatá-lo. Decidira manifestar publicamente o seu maior segredo.
Uma tempestade caiu sobre a praça. Os pingos frios da chuva súbita de verão dissiparam a multidão que até há pouco cercava interessada a velha misteriosa, tentando decifrar o que havia no caixão preto deitado no chão já escaldante da praça.
Abriu-se a urna preta. Demorou mais que dez minutos até que a velha desatasse os nós da corda que a envolvia.
Viram-se vários embrulhos de papel-jornal. Mais de uma dúzia deles. Bem amarrados com cordões vermelhos como se pertencesse a uma seqüência o que continham os pacotes obscuros.
-Tá aí, veja quem quiser. Homem safado merece isso mesmo. Belzebu deve estar com Damião nas profundezas do inferno. Eu estou aqui na praça mostrando sua história. Sou uma mulher viva e ele um garanhão morto.
Dentro dos pacotes, velhas fotos do dia de seu casamento, cartas amorosas trocadas por ambos, além da navalha suja de sangue e, por fim, no último pacote do caixão, os órgãos genitais decepados do marido de Maria Juliana.
Saí da sala de projeção do cinema São Luiz como se houvesse visto realmente a velha maluca algum dia no calçadão da Rua do Comércio. A direção e o elenco do filme trabalharam tão bem que nos deixaram com a ficção, pelas ruas, de volta para casa, como se nossa verdade cotidiana o fosse. Que filme!