ANTÔNIO, MANÉ E AS CHUTEIRAS

Antônio, a mulher e os filhos abandonaram a roça e trocaram o cabo da enxada pelo lápis (atrás da orelha), igualzinho acontecia nos sonhos do ex-agricultor:

__ Um dia, com a graça de Deus, troco a enxada pelo lápis atrás da orelha e vou atender freguesia atrás do balcão! Em vez de calos nas mãos, terei calo na orelha! O lápis fazendo contas o dia inteiro e a gaveta cheia, com a féria do dia!

Dito e feito! A colheita daquele ano foi boa, já dava para tocar o próprio negócio e não ser mais porcenteiro de patrão. A filharada precisava de escola e Antônio não os queria com a mesma sina de puxar enxadas.

Juntou família e tralhas, foi fazer a vida em São Martinho, lugarejo próximo ao sítio onde morava, com três ruas que, se tinham nomes, os moradores não sabiam. Eram identificadas como Rua de Cá, Rua de Lá e Rua do Meio. Esta, a principal, onde o comércio agitava os moradores, mormente nos sábados, quando os caminhões das fazendas traziam os fregueses para a compra da semana.

_ É lugar de gente boa! __ Dizia ele à família.

Na Rua do Meio, Antônio realizou o sonho. Montou seu comércio de secos e molhados e homenageou o santo do lugar __ Casa São Martinho. Letreiro bonito na parede, lápis atrás da orelha e a molecadinha atrás do balcão, fazendo festa com balas de mel. Agora eram donos da melhor venda do lugar.

Havia nas prateleiras “de um tudo”, conforme dizia Antônio, orgulhoso, para bem servir a freguesia. Os filhos mais velhos já ajudavam no balcão e a vida sorria para os novos comerciantes.

Entrava a década de cinquenta, a venda já bem estabelecida ia fazendo nome na região. Mané, o Manezinho, quarto filho na descendência, novinho ainda já mostrava dotes de vendedor e esperteza de comerciante. Era “um pé de boi” na venda, bom contador de histórias, imitador nato, admirado pelos fregueses que gostavam de ouvi-lo.

Moleque esperto, também era bom de bola. Tinha destreza nos pés e jogava peladas nos domingos, no chão poeirento de campos improvisados em terrenos baldios. Descalço, sempre descalço, literalmente com os pés no chão, entre pedras, pregos velhos, cacos de vidros e tantas outras tranqueiras. A ginga de Mané era a festa do jogo, os seus dribles encantavam os homens que assistiam às peladas, sentados em bancos de tábuas, à sombra das árvores. Certo dia, um deles não se segurou e foi ter com o vendeiro Antônio.

__ Compadre Antônio, ainda que mal lhe pergunte, por que não compra um par de chuteiras pro seu filho que joga tão bem?

O homem mostrava-se indignado, alertando sobre o perigo do menino cortar os pés e acabar tendo um tétano.

__ É bom menino e trabalhador, compadre! Jogar é seu divertimento nos domingos!

O vendeiro sentiu os brios avermelharem sua face, misturou vergonha com arrependimento. Abriu a gaveta da féria do dia, separou um tanto e tomou a decisão, naquela segunda-feira.

__Mané, venha cá! Tome esses trocados e vá ao sapateiro Jipinho. Encomende a ele um par de chuteiras.

O menino mal podia acreditar que iria ter chuteiras fabricadas por Jipinho, o melhor sapateiro das redondezas. Com os pés descalços, voou até lá e fez a encomenda detalhada, com prazo de entrega no sábado seguinte. Pagamento adiantado.

Durante toda a semana ele sonhara com as chuteiras de couro, pespontadas, cravos presos com pregos no solado, tudo de primeira. No final do expediente daquele sábado, a venda fechada, encerrou o caixa e, antes mesmo do banho, correu à sapataria em busca da encomenda.

Lá estavam elas, negras como as asas da graúna, cadarços colocados, prontinhas para estraçalhar o jogo no campeonato de domingo.

Levou-as para casa, deixou-as perto da cama. Trocavam olhares, elas e ele. O domingo prometia, sonhava com os gols que faria, sem que lhes doessem os dedões. Estirou-se na cama após o banho e sonhou acordado.

Naquela noite, iria a uma festa de casamento num sítio próximo. Dançar também era especialidade dele e não perderia a festança.

Entrando nos quinze anos, todas as festas já exigiam terno e gravata. Engalanou-se com seu único terno de casimira escura, camisa branca e gravata preta acertada no colarinho bem passado. Ao calçar as meias, olhou mais uma vez para as chuteiras, que reluziam à espera do domingo. Achou que devia calçá-las novamente, para certificar-se de que serviam bem nos pés.

Olhou-se no espelho, achou-se bem posto com terno gravata e... chuteiras. Decidiu que seria uma pena esperar para estreá-las no domingo. Elas ficavam tão bem com aquela roupa fina. Não se fez de rogado, foi à festa engalanado e com chuteiras novas.

O terreirão estava coberto com encerado sobre estrutura de bambus. Os convidados jantaram, lambuzaram-se de doces de abóbora, mamão e cidra. A bebida era guaraná e sodinha, sem contar algumas garrafas de cerveja resfriadas em gelo com pó-de-serra. O sanfoneiro Nelson já abria o fole, acompanhado pelo pandeiro do barbeiro Maurício. O baile correu solto até o raiar do dia.

Até hoje contam que não sabiam se as faíscas que brilhavam no alto eram do sol que nascia ou dos cravos das chuteiras de Mané, que dançava e rodopiava, conduzindo as moças e sonhando com gols.

LONDRINA,

01.08.2013

21:49

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 01/08/2013
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