A Moça e o Piano

Ela tinha escolhido aquela tarde. Tantas vezes já havia passado de ônibus por aquela rua. Sempre que passava por ali, seu olhar se detinha naquela vitrine e ela só voltava a olhar para frente quando o ônibus dobrava a esquina e não tinha mais o que olhar e mesmo assim, voltava seu rosto lentamente, e com o olhar perdido. Mas hoje era diferente, ela iria àquela loja. Ela trazia o desejo de reviver o passado.

Quando o ônibus parou, desceu com o seu coração já em descompasso. Atravessou a rua e como se estivesse hipnotizada entrou na loja, não ouviu nem o que o vendedor havia dito, e caminhou rumo ao piano. Suas mãos suavam frio e estava trêmula, e só percebeu isso, quando viu suas digitais marcadas no tampo do teclado. Limpou os dedos na saia e como se preparando para um concerto, sentou-se em frente ao teclado. Esticou as costas, ajustou-se na banqueta, retirou o feltro que cobria as teclas e começou a dedilhar. Sentia seu corpo trêmulo. Seus dedos se ajustavam entre os espaços das teclas. Errou nos primeiros acordes, mas nada disso era importante. A emoção era maior: entre um acorde e outro, as lembranças vinham. Era o seu passado chegando. Podia se lembrar das aulas com Dona Yolanda que fora sua professora por tantos anos. Ela era rígida e cobrava uma seriedade e responsabilidade impossível de uma adolescente cumprir. Podia sentir agora a mão firme, porém macia e flácida de cor quase que transparente de D. Yolanda sobre a sua, tentando fazê-la acertar; sua voz rouca e baixa, dando o tom da melodia. O cheiro do perfume doce, forte e barato que usava, o cheiro de naftalina das roupas dela e o som metálico da marcação do compasso imposto pelo diapasão sobre o tampo do piano. Sempre às quintas-feiras pela tarde, tinha aula de piano.

Também podia jurar que naquele momento, vinha da cozinha um cheiro de café fresco e ouvia o fritar dos bolinhos de chuva que seriam envoltos em açúcar e canela, que sua mãe fazia nas tardes de sábado para servir aos amigos que iam ouvi-la tocar. Sentiu a presença de seu pai, que atentamente aguardava ao seu lado, o sinalizar com a cabeça, para virar a folha da partitura da música que estava tocando. Agora já era o passado, ali mais vivo do que nunca.

Quanto tempo ela ficou ali, não sabia dizer, mas foi trazida ao presente pela mão fria e calejada do vendedor tocando no seu ombro, avisando que era hora de fechar a loja. Ela ainda tonta e embriagada pelo transe levantou-se, agradeceu e quando já estava deixando a loja, o vendedor, um senhor baixo, de voz baixa, que também se vestia de passado, com uma boina de feltro marrom, um colete de veludo grená e um relógio de corrente dourada pendurada sobre o colete, a chamou com uma voz melodiosa e triste e falou que aquele piano seria retirado no dia seguinte, pois havia sido vendido. Ela silenciosamente voltou, passou as mãos suavemente sobre as teclas, recolocou o feltro, fechou o tampo, olhou nos olhos úmidos do vendedor que também refletiam as suas lágrimas e saiu sem olhar para trás. Naquele momento o passado se despediu dela.

Wanda Recker
Enviado por Wanda Recker em 21/08/2005
Reeditado em 15/09/2005
Código do texto: T44125