A visita do poeta morto (Versão adaptada para curta metragem)

Gotas pesadas de chuva açoitavam a janela e seus ecos enchiam meus ouvidos... Contrariado, lancei as cinzas em um papel borrado, um texto incompleto que jazia sobre a escrivaninha. Então no derradeiro trago... Um suspiro... uma dor, por um momento pude sentir os versos brotando de meus dedos e os riscos da caneta sobre o papel. Terminado o parto, deixei meu legado, sobre a mesa. Ainda insatisfeito, apaguei a vela e me lancei sobre a cama. Tomei mais um gole de vinho tentando inutilmente aplacar minha inquietude. O leito parecia afundar ante o peso da minha ânsia. Voltei à escrivaninha, papéis amarelados, livros abertos... uma garrafa de vinho. Aquilo tudo me lembrava o quarto do malfadado Werther em sua derradeira noite. Ri-me disto. Sentei-me novamente, ofegante, meu coração disparava. Aquela atmosfera carregada, quase líquida, enchia-me os pulmões.

Eu sentia uma presença estranha no quarto, o que me deixava ainda mais inquieto.

Repousei a minha cabeça sobre o travesseiro e quase adormecendo,

imaginei as ruas vazias do lado de fora.

As luminárias lúgubres do Recife Antigo e as pessoas sob a iluminação vaga fugindo da chuva. Podia até ouvir os seus passos...

Até que alguém bateu à porta. Olhei para o velho relógio que fora de meu avô... Eram quase duas horas. Ergui-me a contragosto e acendi algumas velas.

Ao abrir a porta, um estranho falou.

- Boa noite, companheiro.

- Boa noite, respondi, sem saber por que dizia aquilo.

Ele respirava com certa dificuldade, olhou-me fundo nos olhos e falou como se eu fosse um conhecido.

- O que tens? Pareces bastante angustiado.

- Acabaram-se o cigarro e o vinho e chove demais para que eu saia a rua. Falta-me sono. Falta-me inspiração!

O estranho me lembrava alguém. Não sabia de onde, mas já o tinha visto.

Era um jovem rapaz, parecendo ter pouco mais de vinte anos, nem alto nem baixo, cabelos negros e olhos castanhos. Era magro e tinha profundas olheiras. Parecia bastante adoentado. Por fim recuei para permitir sua entrada.

- Entre, por favor, e sente-se.

O estranho entrou sentou-se à escrivaninha.

- Tens bom gosto meu amigo. Disse, apontando para os livros sobre a mesa.

Ali próximos, Byron, Álvares de Azevedo, Goethe, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza e Dickens estavam representados.

- Gosto da companhia de grandes poetas mortos, os vivos poucos me agradam. Nasci no século errado, por certo.

O jovem sorriu, enquanto folheava um dos livros.

- Ha algum tempo venho tentando escrever um conto. Mas algo me escapa, as palavras não se encaixam. A inspiração me foge. No entanto, consegui conceber um poema sobre essa minha angústia. Murmurei...

Ele estava ofegante... Aparentava um cansaço de viver incomum para pessoas da sua idade.

Ele inspirou profundamente o ar pesado do meu quarto. Acendeu um cigarro e falou.

- Mostra-me teu Poema. Já faz algum tempo que não leio nada além de meus rascunhos...

Andei até a escrivaninha, retirei o Poema de dentro de um livro e o entreguei... Afastei-me um pouco e o deixei ler.

O que você sabe da verdade,

O que lhe dizem seus folhetins?

Os teus amigos e afins

Cheios de parcialidade.

Como nos programas da televisão

Você vive uma falsa realidade

Tão comum na sua idade

Quanto embriaguez e ilusão

O que você sabe sobre mim?

O que você sabe sobre o amor?

O que sabe sobre minha dor

Sobre minha visão ruim...

O que você sabe, menina?

Sobre aquela minha canção,

Sobre o meu coração

Sobre minha atual ruína.

Andei pelo quarto, ansioso, talvez à espera da aprovação do estranho...

Ele ergueu-se sem se pronunciar e tirou uma garrafa do bolso. Encheu o meu copo e falou levando a garrafa aos lábios

- Bebamos. Ao teu poema!

Bebi avidamente o que ele despejara em minha taça. Era um vinho quente e doce. Subiu-me à cabeça rapidamente. Senti as palavras se organizando em minha mente e tudo me pareceu mais claro.

Então vi a imagem do estranho se desvanecendo em minha frente. Lentamente a matéria que o compunha foi se tornando um tênue vapor etéreo que tomou o quarto inteiro. Ofegante, inspirei toda a fumaça... Por fim pude ouvir sua voz em minha cabeça...

- Devo ir agora, meu rapaz. Já tens tudo o que precisas para teu conto. Desejo-te boa sorte.

De repente, a vela apagou-se.

Acordei perturbado. O relógio anunciava quatro horas da manhã. Levantei-me e fui até a escrivaninha. Acendi as velas... Meu copo estava vazio, os livros no mesmo lugar. Abri um deles. Noite na Taverna... Reconheci imediatamente o estranho na velha ilustração do autor do livro.

Sentei e pus-me a escrever.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 30/07/2013
Reeditado em 12/09/2016
Código do texto: T4412366
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.