CABRA DA PESTE ACUADO

Zé,... Zé,... Zé do Lote! Aqueles gritos ecoavam na memória do ancião. Estaria ouvindo coisas ou era a voz do tio Pedro Otero chamando por ele? Mas pelo que sabia o tio já falecera há mais de 30 anos. Não podia ser ele e muito menos a sua voz chamando-o pelo nome, ou melhor, apelido advindo de um lote de burros que conduzia no trabalho de transporte de mercadorias do sítio para a feira da cidade e vice-versa.

A lembrança estava falando alto então... Logo ele que não era de falar sozinho e fazia pouco de quem assim procedia, desde quando ainda era moço. Estava com 85 anos de vida, bem vivida, no sertão central do seu estado natal, encravado no nordeste brasileiro.

Não sabia por que lembrara, exatamente agora, daquela forma única e pitoresca como seu tio materno o chamava, mas ficara bastante satisfeito com a lembrança que chegava à boa hora. Estava a ver um desses programas policiais que passam na televisão e só tem cheiro de pólvora e imagem de gente morta pelo que os repórteres costumam chamar de bala perdida. Tudo muito diferente de quando morou no pequenino munícipio de Serra Preta, onde as pendengas eram resolvidas no murro ou na faca.

Continuando a pensar nisso, fez uma viagem no tempo e lembrou-se que aquele tio era cabra na dele, que dava um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela depois que entrava. Peixeira de dezoito polegadas na cintura, escondida pela camisa aberta na altura do segundo botão de cima para baixo, com a calça tendo a barra dobrada duas vezes, era uma descrição rápida da indumentária usada pelo tio àquela época. Trabalhador braçal de botar e tirar roçado com a mesma velocidade, o tio Pedro era de pouco falar. Quando ele gritava por alguém era porque queria que a pessoa viesse na carreira.

Ele mesmo, Zé do Lote, correu muito, de bater com o pé na própria bunda, quando o tio chamava. Foi em um dia desses em que foi chamado que ocorreu um fato marcante na sua vida. Estava tirando capim na vazante quando o grito do tio chamou a sua atenção. Enquanto corria, o coração palpitava cada vez mais como se quisesse sair pela boca. Dessa vez o grito era diferente. Aperreado até. Como estava a certa distância da casa grande da fazenda, demorou a chegar. Logo que conseguiu se aproximar mais, vislumbrou a imagem do tio de cócoras com os dois braços segurando a barriga.

Foi uma cena inesquecível e ele pôs-se a imaginar o que poderia ter acontecido. Ora pensava em uma pancada, ora pensava em uma facada que o tio poderia ter sofrido. Logo naquele tempo em que toda desfeita era resolvida na tapa ou na faca. Não que seu tio fosse de fazer desfeita com ninguém, mas tinha inimigos, àqueles mesmos que ele já enfrentara antes e deixara todo moído de pau por tudo quanto era lugar do corpo. Aliás, diga-se de passagem, era de bater muito no cabra de peia, mas só puxava a peixeira se o outro puxasse primeiro.

Zé,... Zé,... Zé do Lote, socorro! Me ajude! – dizia o tio com a voz cada vez mais fraca. O sobrinho nessas alturas já pensava no pior. No entanto, por mais que olhasse para o tio não identificava o motivo de tanta dor e reclamação. Só quando estava a pouco menos de três metros de distância foi que percebeu um cheiro esquisito vindo da banda do velho. Seria o que estava pensando? Aproximou-se mais e confirmou ao observar o velho pela retaguarda que o cidadão envergonhado teimava em tentar esconder. Isso foi demais. Um homem acostumado na lida do campo, enfrentando touro à unha, lutando com onça pintada, nunca derrotado em luta corporal com qualquer homem das redondezas, estava ali rendido, totalmente entregue a uma dor de barriga, que hoje em dia se chama de cólica intestinal, causada por uma comida que lhe houvera feito mal.

OBS. Conto do meu livro TRINTA CONTAS DE UM ROSÁRIO.