Escuridão

Era final de tarde. O céu azul escuro transparecia a ausência de luz de sua alma. Ao longe, crianças corriam e riam gostosamente. Saberiam elas a dor da vida? Reconheceriam seus sorrisos nos espelhos em um breve futuro?

Tragou mais uma vez. “Esse negócio vai te matar!”, gritava a sua mãe. “Deixe que mate, mãe. Não mata a vida muito mais?”, questionava diariamente. Estava cansada de tudo o que carregava dentro de si e da dificuldade que as pessoas tinham em entender seus demônios. Chamavam-na de exagerada e dramática. Faltava compreensão ao seu redor. Quem saberia dizer a ela que tudo ficaria bem? Quem a ajudaria a alcançar o mar manso com que tanto sonhava?

Mais um trago na tentativa de aliviar as dores da alma. Há quanto tempo usava aquele artifício para buscar um pouco mais de felicidade? Fazia tantos anos que nem se lembrava da primeira vez que usou. Apenas lembra que o primeiro trago lhe proporcionou um prazer indescritível, algo inédito em sua vida. Ao soltar a fumaça de seus pulmões, tinha a sensação de se livrar um pouco do peso que carregava em seus ombros. Ilusão. E iludida queria continuar. “Menina, pare com isso. Existem formas que podem te ajudar a acabar com esse vício”, tentava a sua mãe, cujos olhos transpareciam inocência. “E qual é a maneira de me livrar dessa vida?” perguntava, atormentada. A mãe, beata, fazia um sinal da cruz a cada vez que a filha mostrava desgosto por tudo o que a cercava.

“O que me trouxe até aqui?”, pensava todos os dias.

- Tia, chuta a bola! – gritou um menino, de longe, acenando com as mãos. Parou. Olhou para a criança, que ainda era inocente e buscava apenas sua bola, enquanto ela queria encontrar motivos para ser feliz.

Ao perceber que a mulher não iria devolver a bola, o garoto correu e a pegou. Mas, antes de sair, os olhares se cruzaram. Leveza e dor, inocência e maturidade, alegria e tristeza. Todos os paradoxos coexistiram harmonicamente naquele momento. Assustado com os olhos entristecidos que o encaravam, o menino chutou a bola em direção aos amigos e fitou-os novamente .

Sem esperar, as dores foram surpreendidas pelo sorriso jovem com que se deparou. Enquanto uma lágrima brotava dos olhos azuis e escorria pelas bochechas rosadas, as mãos doces tocavam o rosto envelhecido pela vida e seus percalços. O toque era sutil e amigo. Pela primeira vez, ela se sentiu querida. A sensação, que lhe era desconhecida até então, trouxe paz ao seu coração. Ela poderia, naquele momento, ser feliz.

Após outro sorriso, o garoto voltou para brincar com seus amigos. E, de longe, soltou um beijo em sua direção. Mais uma vez, ela foi feliz. E retribuiu o gesto de carinho. Olhou novamente ao redor. Aquela praça, onde vivera doces tardes durante a infância, parecia estranha. Não se sentia mais parte daquele mundo que desabrochava levemente a sua frente. Faltava algo, e ela não sabia explicar a ausência que tanto doía.

Ouvia o barulho da vida pulsar no local, mas não fazia parte daquele cenário. Sua existência destoava das outras que por ali transitavam, riam, brincavam e viviam. Olhou o relógio. Três horas se passaram desde que chegara ali. Mais um cigarro. Era o último do maço. Abandonou-o em cima do banco em que estava sentada. Ele não precisaria mais dela, assim como ela também não precisaria dele.

Aproveitou o sabor doce do trago, sentiu a fumaça alcançar os pulmões e fechou os olhos. Diante de si, uma criança de cabelos claros e olhos azuis corria, brincava, sorria e era feliz. A menina era ela. Carregava uma boneca chamada Lana. De onde havia tirado esse nome?

- Pai, Lana está com fome. Ela quer comer um sanduíche do Zé. Pode levá-la? – gritava a garota, com um sorriso manhoso. Ela conquistaria o que quisesse com aquela doce forma de sorrir. E conseguiu o sanduíche do Zé, que dividiu com Lana.

- Acho que ela não quer mais. Ela vai deixar você comer o resto, pequena. – disse o pai, rindo da imaginação da filha.

- Também acho. Vou aproveitar para comer sozinha. Você quer um pouco, pai? – perguntou, enquanto lambia os dedos sujos de maionese.

- Não, meu amor. Esse é seu. – e sorriu, enquanto pegava um guardanapo para limpar o rosto da criança.

Abriu os olhos. Lágrimas escorriam de seu rosto, agora transtornado com a lembrança. Seu coração estava pesado. Sua alma estava vazia. Aquele fora o último encontro com o pai. Dias depois, ele iria embora, e ela não o veria mais. Para onde fora? Nunca soube. Parecia que aquele homem que tanto amara fazia parte apenas de suas mais doces lembranças. Sem aviso prévio, ele juntou suas poucas roupas e partiu, deixando-a, ainda criança, perdida em suas emoções. Reconhecia todo o esforço de sua mãe em cicatrizar a ferida, mas ela não foi bem sucedida. “Quero tanto que ela consiga ser feliz. Se não fui, ela merece e precisa ser.”

O cigarro queimava seus dedos. Por alguns minutos, ela se esqueceu dele. Jogou fora o que sobrou. Levantou-se do banco em que passou horas sentada e caminhou em direção ao rio, que ficava do outro lado da praça. Atravessou a rua e parou para olhá-lo. Durante a noite, ele era iluminado pelas luzes das pontes e da cidade e ficava muito bonito. Enquanto olhos atentos o observavam, ele seguia seu curso, alheio ao que se passava nas cabeças e corações daqueles que ali estavam.

Olhou para o céu, que agora estava completamente negro. Não havia lua. As estrelas se escondiam por trás das nuvens. Estava tudo escuro, dentro e fora dela. Isso indicava que mais um dia cinza iria nascer em breve. Será que ela o veria? Fechou os olhos, sentiu uma leveza estranha envolver o seu corpo e se entregou à completa escuridão.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 20/07/2013
Reeditado em 15/06/2015
Código do texto: T4396346
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