Dois tiros e uma carreira
Rodrigo era conhecido pelos seus amigos de futebol como o “goleiro elétrico”, por não brincar em serviço quando estava defendendo um gol. Sua elasticidade e seus reflexos eram de causar inveja a qualquer goleiro profissional que o visse em atividade. Muitas vezes, até com um pouco de irresponsabilidade, saía ao encalço de bolas perdidas, estivessem onde estivessem, ao sentir alguma ameaça a sua baliza, que defendia com unhas e dentes, braços e pernas.
Conhecido pegador de pênaltis, tinha em sua memória e seu histórico apenas um gol feito por penalidade máxima durante os jogos.
Sua habilidade era tanta que fazia com que os adversários, em disputas de pênaltis, fossem arriscando cada vez mais, até errarem o alvo. E ele se saía vencedor.
Também era destemido, não vendo perigos ou armadilhas em atitudes de outros. Agia com a mesma garra com que defendia sua meta nas partidas de futebol.
Vinha de uma família grande. Dois de seus irmãos mais velhos também foram goleiros, cada um com sua característica. Eric, conhecido goleiro de futebol profissional, afamado quando jogou e defendeu o time do quartel onde servia, durante o CPOR, mas parando logo em seguida, para continuar os estudos e procurar outra profissão de mais futuro. Tibério, também defensor do quartel no seu tempo de CPOR, especializara-se em futebol de salão. Destemido como Rodrigo, certa vez fraturou o vômer (o pau do nariz) em uma defesa arriscada, tendo recebido um chute do adversário, mas não o deixando fazer o gol. Parou, logo após o acidente, voltando a estudar, como todos os da família faziam. Seu pai sempre estimulara o estudo, dizendo: “um anel no dedo pode resolver um problema; mesmo que ganhe a vida como carroceiro, se houver necessidade, o anel será de grande utilidade”.
A mesma trajetória dos dois irmãos foi seguida por Rodrigo. Nunca se aventurara ao futebol profissional, tendo dado maior valor aos estudos. Mas não deixou de se aventurar a uma ou outra pelada, quer defendendo o gol, quer - agora mais velho - correndo no ataque, para gastar mais energia. Esse cuidado fez com que sempre mantivesse suas duas qualidades como goleiro: elasticidade e agilidade.
Certa vez, em seu ambiente de trabalho, deparou-se com um estranho - um cliente - que andava a sua frente, quando ele pegara um corredor que o levaria à sala da gerência. Sem nenhum aviso ou sinal que revelasse o que faria, de repente, a pessoa que seguia à sua frente virou-se, com a mão estendida para ele. Antes que aquele senhor tivesse dado meia volta, sua mão já estava presa pela de Rodrigo, num gesto de defesa que previra cada passo, cada gesto que seria dado por aquele “atacante”. O senhor, que queria apenas uma informação, tomou maior susto com sua agilidade do que o próprio rapaz. E se explicou, ante o olhar fulminante de Rodrigo.
O mesmo acontecera, tempos depois, em outro ambiente, agora no descampado das ruas da cidade. Estava indo pegar seu carro na oficina e tomara um táxi. Quando chegou ao local solicitado, e antes de descer, puxou a carteira para fazer o pagamento. Um amigo seu o viu dentro do táxi e quis pregar-lhe um susto, sabedor de suas atitudes destemperadas. Quis testar-lhe a agilidade e a frieza. Abordou o táxi sorrateiramente e, com um grito, pôs o seu braço para dentro do veículo, pela porta em que ele estava, em direção ao motorista. Seu braço não chegou a tocar em nada, preso que estava pela mão esquerda do aturdido Rodrigo, ainda a segurar a carteira de cédulas na mão direita. E o susto foi revertido ao assustador.
...
O tempo passou, a idade foi avançando. Chegou um momento em que até as peladas foram escasseando, até desaparecerem. E Rodrigo, para não parar, se viu numa academia de ginástica, a fazer aeróbica, nuns pulinhos para um lado e para o outro, em coreografia cada vez diferente, mas que o mantinha em forma.
Uma de suas características pessoais (além da de bom goleiro, bom estudante e - depois - bom profissional) era o desleixo com que cuidava de si. Tinha camisas amarrotadas, calças velhas, desbotadas e só comprava relógio de camelô.
Num domingo de carnaval (corria o ano de 1988, já casado, com família constituída), estava, pelos caprichos dessa vida, voltando do cemitério, onde fora acompanhar o enterro do filho de um amigo. No retorno, sua mulher pediu para parar em uma padaria e comprar uns pães. Já eram 17 horas e não fizera nada para eles jantarem naquele dia. Assim feito, retomou a volta, sem que tivesse - metodicamente, como sempre fazia - guardado as cédulas de troco em seus respectivos compartimentos na carteira de cédulas. Deixara-as sobre as pernas e continuara a dirigir.
Chegaram em casa. A garagem fechada, parou o carro na rua. Enquanto Lúcia (sua mulher) ia abrir a porta, ele, lentamente, retomou sua liturgia de guarda do dinheiro. Findo isso, desceu do carro (um Del-Rei branco) e se voltou para fechar a porta. Esta se travava automaticamente, sem uso da chave.
Nesse momento, viu pelo vidro da janela (que lhe serviu de espelho) duas pessoas correndo em sua direção. Todo o seu aprendizado no gol, na defesa de sua equipe, o deixara - ainda - com a agilidade mental como se ainda jogando estivesse. E pensou, como um goleiro pensaria: “Não sei o que é, mas não vou deixar me pegar desprevenido”. Incontinenti, jogou para longe a chave do carro.
E se virou.
Dois rapazes: um negro, usando uma dentadura de fantasia na boca, e um sarará o abordaram. O negro, portando uma arma (reconheceu como um 38 cano longo), disse-lhe, com fala atrapalhada pelo uso da dentadura de brinquedo:
— Me dê o relógio!
Depois da primeira defesa, e já restabelecido e pronto para mais uma, Rodrigo viu que não estavam fantasiados e brincando o carnaval. Mas, mesmo assim, agiu como se brincando também estivesse. Com um riso nos lábios, estendeu seu braço esquerdo ao rapaz sarará, para que tirasse seu relógio de camelô, todo enferrujado e que teimava em não querer quebrar, para ser trocado. Pensou: “vou me livrar dele, até que enfim!”
Usava, aí, incoscientemente, a técnica que utilizou durante suas apresentações nas defesas do gol. Deveria tomar conta da situação, deixando o atacante pensar que já estava vencido, para fazer a defesa salvadora.
Fez isso sem perder de vista os olhos nem o revólver do negro, como se estivesse pronto a pegar mais um pênalti.
O rapaz, num átimo, lançou-se ao relógio, tentando arrancá-lo. Mas o relógio (teimoso relógio) não quis sair de seu braço. O solavanco foi tão grande, que seu braço foi e veio... E veio. Direto para segurar o revólver que ainda estava apontando para seu peito. “Não sei se é de verdade, mas não vou deixar fazer o gol”, pensou.
E segurou o braço do negro (que tentou recuar), e o segurou para cima, empurrando-o para trás, segurando-o com a mão esquerda e, ao mesmo tempo, com a direita, tentando segurar seu pescoço, na firme determinação de defender seu gol.
O negro, mais que depressa, pulou para trás e baixou o braço. O revólver, novamente, apontando para seu peito.
Veio-lhe todo o aprendizado na defesa de pênaltis. Em fração de segundo, antes que o mesmo chutasse a bola (puxasse o gatilho), calculou tempo e trajetória da mesma (agora um petardo que nunca pegara). Diferentemente do que sempre fizera antes, saiu do seu caminho, sabendo que dessa vez a defesa do gol poderia significar a perda da vida.
Refeito rapidamente, tendo consciência de ter feito mais uma defesa parcial, voltou ao ataque (a melhor defesa é o ataque, mesmo para o goleiro). Pôs-se no encalço do revólver do negro. Segurou-o novamente, e mais uma vez o rapaz pulou para trás, recuando 3 metros em poucos passos.
Pôs a bola na marca do pênalti e de novo chutou.
O merecimento do apelido de “goleiro elétrico” fez-se presente. Nunca defendia duas bolas da mesma maneira, pois sempre havia um momento diferente. E dessa vez, a defesa do seu gol seria a execução de uma grande “ponte”, um malabarismo que o fez, em um salto mortal, passar quase que por sobre o ombro esquerdo do assaltante e cair, rolando, atrás dele, já pronto para levantar e “defender a meta” outra vez.
O sarará - que já correra ao primeiro revide de Rodrigo - deixou o negro sozinho naquela peleja. Este pensou: “se eu não acertei nele por duas vezes quando estava a minha frente, por trás quem está na defesa agora sou eu”. E correu, desabaladamente, rua abaixo, portando a arma para cima e olhando para trás.
Os dois estampidos, separados por dois segundos um do outro, fizeram acorrer alguns vizinhos.
Já refeito, e sentindo-se íntegro, após rápido exame corporal, Rodrigo levantou-se e foi à cata da chave do seu carro, escondida sob uma moita. Lúcia, espectadora impotente e incrédula daquela peleja inusitada, já a encontrara.
Seu vizinho presenciara tudo do outro lado da rua, e veio acorrer. Rodrigo explicou sua inacreditável integridade física, como se ainda estivesse brincando carnaval:
— Era espoleta! — disse.
O vizinho, indo ao muro onde ficaram cravados os dois projéteis, trouxe-os, dizendo:
— Olhe aqui as espoletas!