Desencontros noturnos

-Hi, babe...

Vera estremeceu. Ouviu a frase e ao mesmo tempo sentiu o toque da mão dele na sua, ele viera pela esquerda enquanto ela olhava à direita, mirando o nada. Estava assustada, há mais de uma hora esperando por ele na frente da faculdade, na noite agora silenciosa e escura; há muito seus colegas haviam ido embora e o tumulto da rua havia desaparecido. Restava um deserto asfaltado, sem uma alma, com um carro vez ou outra.

-Você demorou, Diego...

Nem um beijo.

Ele trazia um cigarro meio fumado no canto da boca, aquela boca de riso torto que tanto a encantava. Ela tremia, de frio e aflição. Ele notou, não disse nada.

- Vamos indo, vou pegar o carro.

Sem mãos dadas. Nem um abraço.

Andaram cerca de cinco quarteirões até a oficina mecânica de Lauro, onde Diego havia dito que o carro ficara durante o dia. Ele destrancou o portão com a chave grande, levantou-o; Vera entrou no carro e saíram. Estava aflita até mesmo por ficar dentro do automóvel por alguns segundos enquanto ele trancava a oficina.

- O Lauro foi dez, deixou o carro zerado. Ouve só o motor.

Ela ouviu e não notou nenhuma diferença, mas sorriu sem vontade.

Ele era bonito, pensava. Aqueles cabelos fartos, negros e cacheados, macios como algodão. E aquele riso torto. Seu perfume estava diferente, não era o habitual, era uma mescla de aroma de flor ao seu cheiro almiscarado... chegou mais perto do pescoço dele, respirou fundo.

- Quê que foi?

- Nada, ela disse. Teu perfume. É bom.

- O de sempre - ele respondeu.

Chegaram à avenida principal do bairro, ali ainda havia alguns bares abertos, uma padaria, um posto de gasolina, a lanchonete. Ela estava faminta, mas sabia que ele devia acordar cedo no dia seguinte, ainda era terça feira e ele não gostava de sair à noite em dias de semana. Sabia que iria deixá-la em casa sem entrar. Eram quase 2 da manhã. Baixou os olhos, resignada, em casa faria uma sopa de pacote.

Nisso viu algo reluzindo no piso do carro. Um brinco. Muito grande, completamente diferente dos que ela estava habituada a usar. Chegou a fazer um movimento com as mãos para pegá-lo, mas desisitiu no meio do caminho. Diego notou e perguntou:

- Quê que foi agora?

- Nada, ela disse. É um brinco no chão.

Ele olhou, displicente.

- Ah, deve ser da Marisa. A secretária, sabe. Aquela loira grandona. Dei carona pra ela hoje.

- Mas seu carro não ficou o dia todo na oficina? Vera perguntou.

Diego ficou sério uns instantes. Depois respondeu, seco:

- Então foi ontem.

Vera sentiu o choro ir chegando devagar, mas resistiu. Um calor esquisito subiu pelo seu peito e morreu na garganta. Olhou para o lado, a fome havia passado e dado lugar a um cansaço enorme, vontade de encostar a cabeça no travesseiro e só acordar depois de um mês. Dormir. Brincar de morrer.

Ao chegarem à porta do prédio de Vera, o celular de Diego apitou. Uma mensagem. Ele leu rapidamente e desligou. Vera pensou ter visto de relance seu riso torto, mas talvez tivesse sido apenas sua imaginação, seu desejo. Adorava o riso torto de Diego. Adorava seu cabelo macio, sua barba por fazer. Adorava se deitar com ele em sua cama de solteiro, onde dormiam espremidos, quase um só. Uma lágrima foi saltando intrometida, ela disfarçou descendo do carro e segurando seus cadernos, fingindo estar atrapalhada com a bolsa. No escuro da noite, da rua parcamente iluminada, seu olhar úmido não seria notado.

- Até amanhã, amor – outro sorriso sem vontade.

- Bye, babe – ele respondeu, jovial.

Nem um beijo, de novo.

Ela entrou no prédio deserto, e ainda pôde ver um último aceno de Diego. Mal fechou a porta e permitiu que as lágrimas represadas saíssem sem controle. Subiu as escadas, largou-se no sofá ao lado do telefone. Teclou alguns números.

- Lia? É, não dá mais. Posso?

Ficou muda uns instantes, sussurrou um “obrigada” quase ininteligível e desligou o telefone.

Pegou sua mala, que já estava pronta desde cedo, achou um pedacinho de papel com um endereço rabiscado às pressas, agarrou uma blusinha de lã azul meio gasta pelo uso, um rolo de papel higiênico, seus cadernos, uma caneta, e abriu a porta. Olhou bem para o minúsculo apartamento pensando do que iria sentir mais saudade, da cadeira de tecido vermelho, do papagaio falante do quintal da casa ao fundo, de Diego e seu riso torto.

O carro de Diego seguia pelas ruazinhas do bairro até chegar na mesma avenida que havia percorrido com Vera há alguns minutos. Parou no semáforo fechado, o vermelho tingiu o pára-brisas. Pensou em Cristina, seu corpo alucinante, sua fome insaciável. Cris, ainda tinha o cheiro de flor dela em seu pescoço, era louca, aquela Cris. Tão quente, tão sensual... sentiu-se excitado só de pensar nela, e fazia tão pouco tempo que a conhecia... alguns meses, Cris, Crica, como a chamava às vezes pela mania de dar ordens, me beija aqui, passa a mão ali, me traz um saco de pipoca. Crica. Não passava despercebida em nenhum lugar aonde iam juntos, com seus brincos enormes e reluzentes, a Crica. Falava alto, era exuberante inteira, alta, forte, um corpo de matar. Ele adorava causar inveja nos amigos, eles a comiam com os olhos. Um ou outro o repreendia, e a Vera, cara? Mas a Vera não era a Crica. A Vera era um corpinho mignon, pequeno, delicado, umas mãozinhas de criança. Mas adorava fazer massagens, a Vera. Quando ele estava cansado demais, ela sabia, massageava suas costas; era bom. E quando queria transar sabia também, era quente, aconchegante, miúda, a Verinha. Só assim para caber junto com ele na sua cama de solteiro.

E lá estava ela, Cristina, Cris, Crica, no seu vestido vermelho florido, salto alto, o corpão bem delineado contra a luz da lanchonete. Esperando por ele.

Parou o carro, ela entrou, beijo escandaloso melado de batom.

- E aí, gato? Deu certo?

Diego olhou para ela, nos olhos dela. Não viu o mesmo calor do corpo.

- Então, neném? Ela viu o brinco? Percebeu a mensagem do celular?

Seu riso era enorme, dentes muito brancos à mostra, um riso entre debochado e ansioso.

- Ai, não me mata, gato, me conta... Falou com ela? Ela falou com você?

Diego não via mais Crica. Diego não via mais nada. Olhou para ela como olhara para o semáforo fechado, uma grande luz vermelha florida, dentes brancos de luz de mercúrio. Ela foi ficando impaciente, ele arrancou com o carro, pensava em Vera, seu coração batia sem ritmo, queria chegar logo não sabia aonde e nem por quê.

Para espanto de Cristina, não foram ao motel, mas à sua casa. Ele abriu-lhe a porta do carro, e disse: chegamos.

- Pensei que a gente ia no My Love... ela disse, delicada.

- Não, Cris, hoje não.

- Amanhã?

- Nem amanhã.

- Que foi, neném?

Ele olhou para ela durante um bom tempo, muito sério. Ela se impacientou.

- Tá pensando o quê, cara? Que eu sou mulher pra ser descartada assim?

Ele só olhava, olhava.

- Fala alguma coisa, deixa de ser banana!

Os gritos dela podiam ser ouvidos por todo o quarteirão. Diego ficou com medo que a vizinhança acordasse.

Ela ainda disse algumas frases feitas, alguns palavrões, mas Diego não ouviu muito bem. Talvez ela tenha dito “some da minha frente” ou algo parecido antes de sair do carro batendo a porta, mas ele não tinha certeza. Ficou olhando a Crica subir a escada atá a porta de sua casa, e admirou seu corpo maravilhoso. Parecia ainda mais rebolante, mais sensual que nunca, mas dessa vez não ficou excitado, olhou para ela como olhava para as meninas de fio dental na praia, corpos lindos sem rosto e sem personalidade, belezas frias, exuberâncias sem vida.

Assim que ela fechou com raiva a porta da casa, sem olhar para trás, Diego saiu cantando os pneus. Rindo seu riso torto, voltou à avenida, comprou dois sanduíches e um chocolate na padaria, umas flores no posto 24 horas e saiu assobiando, a caminho da casa de Vera.

Que, no ônibus leito, rolo de papel higiênico ao lado, fungava, mordiscando um biscoito água e sal; e preenchia, segurando a caneta com sua mãozinha de criança, o formulário de transferência para a nova faculdade.