Um texto em japonês
Toca o telefone. Miro no visor: não é ele.
Sim, amanhã à tarde, fica agendado, levarei as propostas, conversaremos sobre elas, favor contatar caso haja um imprevisto, um abraço.
Chove uma garoa fina, céu de chumbo, vento inconstante. Folhas de árvore sussurram, incomodadas.
Ao longe vozes de uma televisão ligada. Um riso de criança, vindo de não sei onde, passa rápido como a infância.
O dia adormece ainda claro. A vida pára de respirar.
Toca o telefone outra vez. O mundo sai temporariamente do coma. Mas fica ainda mais cinza: não é ele.
Não recebi a informação, ok, mande novamente, se não receber nas próximas horas retornarei, favor agilizar o processo, precisamos desses dados, um abraço.
As horas se arrastam como lesmas sobre um chão áspero. Confiro na internet o tempo na sua região: chove e faz ainda mais frio que aqui. Mas com toda a informação do mundo ao alcance de meus dedos e à frente de meus olhos, não consigo saber dele. Não sei se está ocupado, se está ao telefone, se está em trânsito, se está com alguém ao lado. Não sei como é sua casa, a rua onde mora, nem mesmo sua cidade sei minimamente traçar. A ignorância assusta. Imagino um texto em japonês: não sei se é uma poesia, a notícia de uma tragédia, a biografia de um general, uma receita culinária.
Chego a teclar seu número, uma sequência interminável gravada em minha memória e na do meu telefone; porém ali organizada num só toque, para agilizar o acesso. Não utilizo este atalho, como se para ter tempo de pensar. E desisto no meio do gesto, não só porque espero um movimento espontâneo do outro lado do aparelho, mas também porque sinto receio. Receio de atrapalhar, de que me julgue ansiosa, de que se sinta pressionado ou esteja impossibilitado de me responder. Ou de constatar, enfim, que me esqueceu.
Fotos digitais, web cams, emails, voz por IP, celular. Porém por trás de cada tecnologia, de cada aparelho, há uma cabeça e um coração. E essas máquinas insondáveis são capazes das maiores panes. Falta às vezes o ingrediente mais importante, o fundamental passo que não pode ser programado por nenhum técnico para que a comunicação finalmente se estabeleça: a vontade, o desejo. O start básico.
Anoiteceu. Nenhuma mensagem, em nenhum dos inúmeros meios de comunicação. Nenhum desejo, nenhuma vontade. Continuo sem notícias dele; à minha frente, um longo texto. Em japonês. A noite entra madrugada adentro, exatamente como no tempo das pinturas rupestres.