NA MALHA FINA
Era mais um dia de trabalho para Genildo, auditor de tributos. Com uma ordem de serviço em mão sua missão era investigar uma declaração de Imposto de Renda, de uma pessoa de 68 anos de idade, na qual ela declarava um patrimônio milionário em bens não tangíveis, mas não possuía uma renda compatível para aquele patrimônio, declarando-se como aposentado que ganhava um salário mínimo e meio.
O auditor saía com planejamento em mãos e uma rotina bem definida. Sua hipótese inicial era de erro na declaração, pois uma pessoa que possuísse tal valor em bens não moraria onde esta pessoa morava – sabia onde era a localidade pois a avistava em seu computador em que mostrava uma área bem pobre de ocupação. Descartava inicialmente a suspeita do investigado ser um laranja, pois não havia indícios em seus arquivos pelo cruzamento de dados, e também seu instinto bem apurado de auditor não lhe dizia isso.
Com seu carro entrou no bairro. Crianças brincavam na rua, cachorros aos montes faziam o cortejo em uma verdadeira algazarra, mulheres conversavam nas esquinas, muito desconfiadas miravam o estranho. Num fim de rua, em uma casa muito precária praticamente em um banhado, ele avista um senhor de barba comprida acinzentada, estava vestindo camisa branca social surrada pelo tempo, calça preta bem descorada e sandálias de tiras remendadas por costura. No olhar do senhor havia muita firmeza. Nos lábios um sorriso. E a voz firme cumprimenta o moço da receita com um:
- Bom dia, em que posso servi-lo?
- Bom dia! Respondeu o auditor.
- Em que posso servi-lo?
Ele se apresentou como funcionário da Receita. Falou que precisaria conversar sobre Declaração do Imposto de Renda. Também, perguntou seu nome e outros dados do contribuinte checando-os com seus registros.
Com estas informações em mãos continuou.
- Tenho uma notificação para o senhor, não se assuste, vou explicar pro senhor do que se trata, mas antes tenho que fazer algumas perguntas, é o protocolo. Riu discretamente, para quebrar o gelo e tornar a missão menos árdua e mais tranquila.
O senhor muito solícito, falou que estava às ordens.
- Nossos arquivos apontam que o senhor declarou um valor milionário em bens. Mas pelo que vejo...
O senhor riu, ainda meio discretamente, o que foi acompanhado pelo entrevistador.
- Enviamos ao senhor notificações pelos correios, mas elas retornaram com o não localizado, e por isso estou aqui. Justificava a autoridade.
- Meu filho, tudo que você quiser saber eu lhe contarei. Respondia o senhorzinho em um tom meio que intimista.
Genildo voltou ao carro, pegou alguns papéis, travou a porta e, retornou a casa, que a adentrou com o convite do seu dono.
- Sente-se, fique à vontade, só não ligue que é uma casa simples. Explicou o anfitrião.
- Obrigado, ficarei! Agradeceu a visita.
Sentado em uma cadeira de palha Genildo mirava as paredes escuras da casa, as panelas penduradas debaixo do fogão a lenha chamavam-lhe a atenção, pois estavam muito bem limpas e chegavam a brilhar. O assoalho de madeira, com muitos nós, também brilhavam. Tudo isso remetia-lhe ao seu passado, lembrava de sua casa e a casa de seus avós. Lembrava-se dele limpando o assoalho de sua casa, que possuía muitas frestas, mas à sua brincadeira de puxar os irmãos em um pano velho rendia-lhe um brilho sem igual que o orgulhava – simples, pobre, mas muito limpo era sua ideologia. Isso tudo lhe dava uma imensa saudade de seu tempo passado. Uma infância rica de carinho e muita brincadeira.
- Você aceita um café? Interrompe o auditado.
- Não obrigado.
- Então, toma mate? Aceita um? Eu não vivo sem chimarrão. Comenta o senhor.
- Aceito! - Isso não vai interromper meu trabalho -. Pensa o servidor.
O senhor de barba acinzentada pegou de sua chaleira e cuia e serviu um mate ao servidor público. Tomou o chimarrão. Agradeceu. Falou que precisava continuar, pois haviam outras atividades previstas para aquele dia, mas agradecia a hospitalidade.
- O senhor pelo que me consta aqui é aposentado? Inquiria o auditor.
- Sim senhor!
- De que mais vive?
- De apanhar latinhas de alumínio.
- O senhor ajuda alguém?
- Não, vivo sozinho. Não tenho filhos, nem outras pessoas que vivem comigo.
Houve uma pausa e senhor abaixou levemente a cabeça.
- Eu vivi desde os 19 anos com minha esposa até os 60 anos. Foi quando ela se foi. Daí pra frente vivi sozinho. Com uma imensa saudade...
Novamente houve uma pausa. O Clima ficou meio triste, mas o ofício tinha que continuar.
- O senhor pode continuar. Pedia o ancião.
O homem da receita indagou sobre seus bens e seguiu-se:
- O que pude perceber o senhor não possui, aparentemente, o que declarou. Meio que constrangido segue.
- Quem fez sua declaração?
- Eu mesmo. Falou firme o interpelado.
- Tudo que possuo de valor está aqui em meu rancho, inclusive ele, tudo que tenho aqui é o meu tesouro. A vida que estas paredes testemunharam não tem valor. Aqui aconteceram os melhores anos de minha vida. O sentimento de gratidão aos céus me fez pôr nestas paredes um preço sem igual. Os amigos que aqui passam deixam muito, o que faz este lugar valer mais. Enfim, desconheço a pobreza - a de espírito é lógico – sempre fui rico, pois possuo o que muitos não possuem – a liberdade, felicidade, dignidade e a gratidão ao bom Deus que tudo criou -.
A autoridade fiscal riu discretamente. Em sua mente, muito bem treinada pelos anos de estudo que o ofício pedia, encontrava uma situação nova. E como mensurá-la? O que fazer? O que apontavam os livros e manuais? Deixava-se convencer pelas explicações lógicas, ou render-se ao valor subjetivo atribuído pelo senhor a tudo que o cercava? Enfim que parecer dar?
- Me vê mais uma cuiada desse chimarrão. Pedia um tempo o auditor para aliviar a tensão e melhor dar termo àquela situação.
Mais um gole e as palavras soltas do senhor dava-lhe o ar da sapiência simples, mas autêntica de uma pessoa que passava exemplo de vida. Termina a cuia de chimarrão.
- Termino por aqui meu serviço. Era o que tinha por hoje. Estou indo. Falou Genildo.
- Tudo bem! O senhor, como todos que aqui vêm, sempre será bem-vindo a minha casa. Dizia com ar autêntico o sábio senhor.
Levanta-se, sai lentamente o auditor. Mas quando sai, a cortina do quarto levanta-se ao vento e ele percebe no quarto um lindo quadro, de uma delicadeza sem igual. Possuía traços impressionistas. Sabia o auditor por sempre apreciar as belas artes. Pensou ele, quem é este senhor? Perguntou:
- Que belo quadro hein?
- Lindíssimo. Um dos meus maiores tesouros, empreguei nele tudo que ganhei em minha vida, mas sem o arrependimento, pois ele por sua apreciação me inspira a ser um homem melhor. Enfatiza o senhorzinho.
Com um adeus, um aperto de mão bem forte, despedem-se os senhores.
No relatório. Ordem cumprida. O parecer: “Nada consta de Anormal ou Inadequado na Declaração Auditada”.
(Lima, 2011, Editora UNICENTRO).
(14/08/2009).