Asa, pra que te quero?

Já era mais de meio-dia, e Agápito ainda estava a olhar para o céu, em busca de algo que só ele mesmo imaginava existir. Sua mente navegava pelas esferas do irreal, do imaginário, do inverossímil. Mas aquilo que cultivava era totalmente factível a ele.

“O homem pode voar”, pensava ele. E se imaginava, qual Superman... Superman, não: Capitão Marvel. Imaginava ele com uma capa que lhe serviria de asa nas suas aventuras de vôo. E essas aventuras habitavam seus sonhos com muita freqüência.

Era-lhe comum sonhar voando, em situações inusitadas: suas pernas faziam força em atmosfera de densidade seletiva, que não lhe pesava nas costas, no corpo nem nos pulmões, mas lhe fazia reação ao movimento contínuo e forte, como um pedalar, no ar. Sonhava que seu corpo, qual asa de um automóvel de Fórmula 1, fazia atrito com essa atmosfera viscosa ao contato, porém leve ao respirar.

Nada do que fazia (trabalhava numa corretora de imóveis) em sua profissão tinha influência naquele seu modo de pensar. Mas sempre imaginava, semelhante a seu patrício do século passado pensou: o homem pode voar. E não somente em sonho.

Suas leituras de história em quadrinhos deixaram umas invejas que seriam, no seu viver, transformadas em perseguição: sonhava que poderia ser como Billy Batson: quando dizia a palavra mágica “Shazam”, transformava-se no Capitão Marvel, um super-herói voador. Havia diferença entre Billy Batson e Clark Kent. Este proviera de um planeta desintegrado, enquanto que Billy era um ser humano comum, tal qual Agápito se imaginava.

Existiam outros personagens que o deixavam com a inveja infantil de superpoderes: o Fantasma (podia ler um jornal a um quilômetro de distância), Mandrake (um olhar seu moldava o pensamento do adversário e o transformava em realidade); Tarzan (utilizava sua força corporal e o convívio com os animais silvestres para tirar o proveito da natureza em benefício próprio e, conseqüentemente, do bem que perseguia e apregoava).

Havia, também, entre os personagens tirados da vida real, o delegado Wyatt Earp, rápido no gatilho, que nunca sacava seu revólver antes do inimigo, utilizando para isso sua agilidade e a observação dos movimentos do adversário, fazendo-o prever todos os atos no próximo segundo.

Aliás, essa identificação com Wyatt Earp o fez exercer a função de goleiro, quando adolescente. Conseguiu o dom de prever os próximos movimentos do atacante adversário, a ponto de interceptar a bola em ponto que o outro não imaginaria alcançar, desfazendo, com isso, qualquer jogo, e utilizando o fator surpresa a seu favor.

Mas o Capitão Marvel era o seu maior ídolo.

Muitas e muitas vezes, em meio a tarefas exaustivas no trabalho, parou suas atividades, para imaginar-se em um edifício alto, vendo uma moça cair de uma janela e ele, pegando uma toalha ao seu alcance, caía em resgate da mesma. Com aquela toalha, improvisava uma asa para “surfar” no ar e mudar sua trajetória de queda, interceptando a moça e amenizando a velocidade até o contato leve com o chão.

Esse pensamento o perseguia constantemente. Raciocinava: se encontrar o ângulo ideal de ataque, qualquer superfície poderá ser utilizada como asa ou como prancha de surf aéreo. E essa superfície poderia ser fabricada com uma toalha, um lençol, uma blusa rapidamente retirada, uma saia, uma calça rasgada às pressas...

Não tardou muito e viu seu sonho aparecer na televisão: um surfista do ar, utilizando uma pequena prancha presa aos pés, semelhante a um skate sem rodas. O aerobata andava no ar, fazia acrobacias (melhor dizendo: piruetas), sempre em queda, como Agápito se imaginava, mas dominando essa caída de modo a fazer o trajeto que quisesse, amenizando a velocidade até o contato com o chão. Esse surfista ainda não estava tão avançado, pois o fim de seu trajeto era auxiliado por um pára-quedas. Ainda.

Ficava, na sua delirante idéia, horas e horas estudando o vôo dos morcegos. Esses animais possuíam membranas nos membros e, não tendo os corpos tão adaptados ao vôo como as aves, mesmo assim conseguiam proezas espetaculares no ar.

Nos intervalos entre os sonhos, trabalhava. E seu trabalho era muito bem proveitoso e aproveitado. Aumentou seu raio de ação, e iniciou suas atividades em outros Estados, no que necessariamente incluía horas de vôo. Horas de vôo dentro de um charuto mais pesado que o ar, mas que não obedecia a ordens dos seus membros, do seu corpo. Um charuto que o levava no interior. Sim, estava voando, utilizando as leis da física que imaginava poder dominar (tal qual Santos Dumont pensou). Mas seu horizonte sempre era outro: o vôo individual, em queda livre - não o vôo de Santos Dumont, mas aquele dos irmãos Wright, que quiseram se dizer inventores do avião - sem, no entanto, necessitar de máquina, tal qual uma asa delta ou um pára-quedas.

Estava imerso em seus pensamentos, quando sentiu um choque imenso. Imediatamente, tudo revirou. Que poderia ter ocorrido a uma altitude de 11200 metros, onde só os grandes aviões trafegam?

Não teve tempo para pensar. Tudo estava despencando. Tudo, inclusive ele, dentro daquele charuto voador, agora transformado em um bólido desgovernado e em queda livre.

Não teve, mesmo, tempo para pensar muito. Utilizou a rapidez de raciocínio tão insistentemente exercitada em suas atividades de goleiro, espelhado em Wyatt Earp, prevendo o próximo segundo e agindo nessa fração de tempo.

Mas naquela altura, a atmosfera rarefeita o faria perder a consciência em 15 segundos. Se não morresse de frio. Além do mais, ainda continuava preso àquele charuto.

Mas não tinha tempo a perder. Teve mais do que o seu segundo de reação utilizado no gol, para sacar de sua arma.

Saia? Logicamente não utilizava. Tinha uma calça jeans (sua indumentária cotidiana), e uma camisa de mangas compridas. Rapidamente, naquele pandemônio, conseguiu uma camiseta e um blusão de malha grossa (que ironicamente levava em uma valise à mão). Pôs o blusão, fechado, entre os braços levantados, a cobrir a cabeça, e a camiseta foi vestida, ao contrário, entre as pernas, com os pés a tentar sair pelas mangas. Retirou o cinto e o amarrou, novamente, na cintura, agora sobre a camiseta, para que o vento não a arrancasse na queda.

Sabia-se perdido. Nada mais tinha a perder, senão a utilização de seu sonho, na última façanha.

Para não perder a consciência (muitos já estavam inconscientes ao seu redor, pela força centrífuga de rodopio da aeronave e por não utilizar o oxigênio), inflou os pulmões o quanto pôde com auxílio de uma máscara pendente a balançante, afastando-se da poltrona para, em queda livre dentro do avião, diminuir o efeito da rotação.

Da mesma maneira, quando sentiu ser o momento propício, aproximou-se de uma das laterais do charuto, já agora em desintegração. Aproveitou a força centrífuga e um rombo na estrutura, para ser lançado à distância, como um homem-bala: braços à frente, com o blusão a cobrir a cabeça, pernas afastadas, e se contorcendo para procurar o melhor ângulo de ataque à atmosfera agora já mais densa.

Era um vôo cego. Não poderia olhar pelo orifício anterior do blusão. Isso faria com que o ar penetrasse com muita pressão e seus pulmões explodissem.

O tato (se é que se pode chamar de tato aquele contato com um vento fortíssimo a lhe tomar o corpo) o faria imaginar a posição e o ângulo de queda.

Não poderia, logicamente, tentar frear com rapidez, pois teria que se fazer de lâmina, cortando aquele fluido agora com aspecto de sólido.

Tentou surfar, utilizando angulações diferentes das pernas e dos braços. Sentiu, com isso, já estar tomando pé da situação. Conseguia mudar levemente a rota.

E foi - lentamente - diminuindo o ângulo de queda. Saiu de quase 90 grau (após ser lançado) para uns 40 a 45 graus, o que já lhe deixava ver, através de frestas no blusão, a distância da superfície e sua trajetória de queda.

Arriscou diminuir mais esse ângulo. Conseguiu, em um momento, zerá-lo, ou seja, não mais cair. Mas a ausência de ar fluindo com rapidez pelas “asas” que criara em si o fazia voltar a cair em desgoverno, necessitando, desse modo, de outro esforço para retomar o controle da queda.

Entendeu, com isso, que esse artifício só poderia ser utilizado poucas vezes, para diminuir a velocidade de queda, e quando já estivesse próximo ao chão, para que houvesse um tangenciamento à superfície, até que novamente parasse no ar e, depois, despencasse. Nesse instante, porém, já estaria quase no chão, e o choque seria minimizado.

Mais algumas manobras do gênero, agora procurando um ângulo não muito raso, e Agápito foi-se familiarizando com suas “asas”. Fez tentativas de mudar lateralmente a trajetória, contorcendo o corpo. Teve sucesso. Utilizou esse expediente para, em círculos, diminuir a velocidade de descida, transferindo o vetor que o levava para o chão em vetor que o faria ir lateralmente, pela força centrífuga então criada. (Eram rudimentos da física aprendida no colégio).

Ei-lo, então, a dar voltas e voltas, qual urubu, sem bater as asas, descendo com uma suavidade que ele mesmo não imaginava em seus sonhos mais mirabolantes.

Era chegada a hora do ataque final. Viu se aproximarem (através da brecha do blusão) as copas das árvores. Pensou em se amparar em alguma delas e amortecer a velocidade. Matou no nascedouro esse pensamento, pois um leve toque com uma superfície sólida agora, mesmo que fosse uma folhagem, o faria perder o controle e cair. E as árvores ali tinham suas copas a uma média de 50 metros do chão.

Saiu procurando uma clareira qualquer. Nas idas e vindas, em círculos, agora sob controle total, vira fumaça e umas estruturas claras, como se fosse a fuselagem de um avião. Lembrou de tudo (até então, estava com a mente totalmente voltada para a sobrevivência). Viu que seu avião caíra, mas não lhe era viável a utilização daquela clareira aberta.

Já se passaram quarenta minutos da queda, e o neo-Ícaro já estava totalmente dono de seus novos apêndices. Qual esportista de asa Delta, espelhado no vôo do urubu, ao utilizar ventos ascendentes, conseguiu retomar altura, na tentativa de ir mais além, à procura de um lugar seguro para o pouso.

Um pequeno igarapé foi visualizado. Retomou os seus círculos em evolução, preparando numa possível aquaplanagem.

Tudo sob controle, agora era rezar para que Deus o ajudasse mais um pouquinho e não deixasse nenhuma pedra sob a lâmina dágua do igarapé, nem houvesse piranhas nele. Não estava disposto a “morrer na praia”, depois de tanto “nadar”.

...

Um frio penetrante o acordou. Deus ouvira suas preces.

Ele já tivera tempo de se situar, de lembrar todo o ocorrido, embora não em detalhes nem a causa daquele acidente.

A água, embora no meio da selva amazônica e a céu aberto, era um veio, encontrado por ele como salvador, provindo de uma fonte próxima, dentro de floresta fechada. A água era fria.

Algum tempo semi-consciente o fizera esquentar o corpo que estivera frio pelo contato com o ar em altíssima velocidade por longa hora de queda livre controlada. Mas a água, agora, depois de refeita a temperatura corporal, agia como o ar fizera antes, resfriando-o. E ele acordou, já noite escura.

Saiu da água, tateando, e foi deitar em superfície seca (ou pelo menos sólida). Esperaria, silente e cauteloso, a noite passar e outro dia aparecer. Nada mais poderia fazer. Estava vivo!

...

Horário nobre da televisão. Plantão de notícia em todas as emissoras:

“Um avião Boeing 737-800, da Gol, desapareceu na selva amazônica, e há suspeita de que tenha caído. Equipe de paraquedistas do Parasar da Aeronáutica está sendo enviada para o local, na tentativa de resgatar possíveis sobreviventes, se constatada a queda.”

Alguns minutos, novo plantão.

“Confirmada a queda do Boeing 737-800 da Gol, na selva amazônica. Primeiras notícias dão conta de uma colisão aérea com um jatinho Legacy, de fabricapão da Embraer, comprado por uma empresa americana, que se dirigia àquele país.”

“A lista de passageiros e tripulantes chega a 154 pessoas. Não há esperança de sobreviventes.”

...

O dia amanhece. Agápito, faminto, com sede e frio, procura algum recurso na floresta inóspita que o faça sobreviver até encontrar alguém, ou até alguém o encontrar.

Suas leituras infantis de história em quadrinhos o fizeram “aprender” normas de sobrevivência na selva, tanto com o Fantasma quanto com Tarzan.

Buscou tubérculos que estivessem quase à flor da terra, para lhe servirem de alimento e aporte de minerais. Enquanto estivesse próximo do igarapé, não precisaria de procurar água.

Aproveitaria a rota seguida por esse veio para procurar algum curso de água maior e - quem sabe? - alcançar alguma habitação, alguém, naquela selva fechada.

A caminhada na floresta não é fácil, e o avanço é lento. Mesmo beirando o igarapé, o sobrevivente sente faltarem forças e, com elas, a esperança ir diminuindo.

À noite, sempre em um lugar diferente, pela necessidade da caminhada constante em busca de saída daquele túmulo vivo, vêm outros problemas. Os ruídos da floresta o assustam e ele, incapacitado e impotente ante essa força estranha, fica imóvel durante todo o período de escuridão.

...

Incursões no local da queda do Boeing da Gol dão conta da inexistência de sobreviventes.

É iniciado o resgate e identificação dos corpos e das caixas pretas.

O acidente está sob investigação.

Com o tempo e a retirada de cadáveres, são resgatados 153 deles.

Ainda há um corpo não encontrado.