Violeiros da Saudade - Parte VIII - Nostalgia
Antes de perceber o que perdeu, notou um pequeno amontoado de pétalas perto de seu pé esquerdo. Pegou algumas e entendeu de onde vinha o cheiro de jasmim. Olhou para o horizonte e viu um trapo marrom dançando no vento. Olhou pra sua mão e já não viu mais papel nenhum.
A decepção já era velha conhecida, sua presença já lhe trazia sensação de companhia. Decepcionado não se sentia sozinho, pois acreditava ser autossuficiente. Decidiu calçar os chinelos pra uma caminhada sob a lua e foi visitar o velho curral de suas três vacas, a casinha de seu cachorro empenada de tanto tomar chuva. Sentia-se orgulhoso por ter feito uma casa para cachorros blindada contra chuva e frio. Era incrível como o interior daquele triângulo de madeira era quente.
Relembrar o que era passado lhe trazia um gosto doce na boca, um sabor que não sabia identificar, mas que trazia bem-estar. Lembrou-se de uma antiga trilha que descobrira aos 12 anos em mais uma de suas caçadas ao seu cachorro fujão.
Era um caminho longo, cheio de obstáculos. Após escalar algumas pedras que impediam a passagem direta, um trecho sinuoso cheio de galhos pontudos e a margem de um riacho, faltaria pouco para chegar ao seu santuário da época de “jovem-adulto”.
O ranger do velho moinho anunciava que faltava pouco para chegar lá. Dali podia avistar uma pedra arredondada a uns dez passos trilha acima. Decidiu sentar por um instante para colocar os pensamentos em uma ordem que não fosse atordoante.
Aquela pedra marcava o limite sul do domínio de seu santuário. Ficava numa posição estratégica do percurso, como uma guarita. Lembrou-se que um dia deixou seu cachorro de guarda enquanto subiu sozinho até lá.
Todas aquelas memórias voando de encontro aos seus olhos o deixava tonto, mas feliz. Gostava de lembrar-se de como as outras crianças eram más com ele no passado, pois agora entendia o motivo delas. Era um ser um tanto patético, de fato. Mas sabia rir de si próprio e isso em sua cabeça valia ouro.
Estava perdido em nostalgia quando, de repente, escorregou da pedra e foi deslizando barranco abaixo no musgo que crescera formando um tapete escorregadio na beirada da trilha. Foi parar perto de outra pedra: “A muralha” , como ele mesmo dizia, era uma pedra enorme semelhante a uma porta dessas que tem um trilho e a gente arrasta pra abrir ou fechar.
Enquanto lembrava-se dos dias que tentava arrastar a pedra para se trancar em seu mundo perfeito sem nunca ter sucesso, atrás de uma teia de aranha pôde ver uma inscrição.
É a dor do fogo e a paz de uma bela canção
É o torpor da mente e a pureza do coração
É a emoção imposta numa oração
É sacrifício sem pedir perdão...
Aqueles versos ecoaram em sua mente enquanto subia novamente a trilha. Por trás de alguns galhos, já podia ver o topo da grande roda do moinho, a torre da vigília e as amarras de sua escada de emergência.
Era como se voltasse a uma época que não lembrava que tivesse existido. Seu peito começara a doer com muita força conforme se aproximava do portal de entrada. Percebia agora – só agora, depois de tantos anos que se foram – que ao invés de se divertir com o belo local que encontrara, seu senso de responsabilidade o impedira de apenas brincar ali. Encontrou velhas armadilhas, placas enferrujadas que proibiam a passagem de estranhos, avisos de “cachorro bravo”. Todos os artefatos que havia utilizado para preservar o que achava que era seu estavam lá ainda. De fato aquilo ainda era dele. Era seu segredo, seu tesouro, seu refúgio... E, apenas mais um lugar para ficar sozinho.
Finalmente, o portal... Aquele emaranhado de galhos que um dia fez seus olhos brilharem hoje já era baixo demais para ele passar senão de joelhos. Ao ver tamanho esplendor da natureza sob a lua cheia, só pôde se perguntar qual seria a estação do ano que estava. Não conseguiu definir, havia flores em meio a folhas avermelhadas num chão frio e uma brisa quente.
Decidiu-se pelo outono, pois se identificava mais com essa estação. O verão, o inverno e a primavera que ficassem com seus “vês e erres” cheios de frescura. Sentia-se diferente e a passividade do outono, com suas sílabas oscilantes e compassadas, o definia bem. Afinal, o outono não é estação climática nem para o turismo, nem para a agricultura, nem para nada. O outono por si só é belo, cativante, reflexivo e suficiente.
Cantou as belezas do outono enquanto caminhava em direção à porta do moinho. Com a cabeça baixa, mirando sempre seu próximo passo, encontrou o pequeno lance de escadas que levava até lá: um, dois, três, pé direito, pé esquerdo, pé direito, abre a porta, pé direito, pé esquerdo, vira, fecha a porta.
Queria subir até a guarita. Queria tomar conta da única coisa que sentia orgulho de ter, mesmo que não fosse dono dali. Queria decifrar a memória que aquela inscrição na pedra lhe trazia. E aquele gosto doce em sua boca...
Assim que colocou a cara no buraco da janela pra observar seu reino, notou um certo movimento nas folhagens das árvores, um certo tom de inquietude no modo como os passarinhos homenageavam a natureza, sentiu saudade da decepção que o acompanhava e agonizou seu abandono.
Já não conseguia mais pensar na beleza da vista de lá. A imagem nítida dos longos cabelos castanhos fugindo para o matagal lhe fincava farpas no peito. Arrependia-se de sua curiosidade ter vencido sua vontade de nunca mais abrir os olhos.
E no meio de tanta dor, lá estava ela dançando perto do portal colhendo flores numa cesta. Quando percebeu que ela estava lá, estremeceu novamente. Pensou que era seu anjo da guarda ou coisa sobrenatural parecida. Não entendia por que ela só aparecia nos momentos em que ele mais precisava e menos conseguia ser forte para tentar ir até lá devolver aquele estranho toque nos lábios.
Enquanto ensaiava um método de abordagem, desistiu de interromper seu ritual. Enquanto tentava fazer seus joelhos pararem de tremer, desistiu de resistir. Enquanto ouvia seu canto doce e seus movimentos quase sagrados, desistiu de descer dali. Sabia que não deveria interferir naquele momento dela. Sabia que não era hora, seja lá o que isso signifique. Apenas sabia que era ali que deveria ficar.
Algo o fazia crer que tudo aconteceria da melhor maneira possível, mesmo que demorasse. E aprendeu a ter esperança. Algo no modo como ela pisava no chão o fazia sonhar. E aprendeu a admirar o que a vida tem de belo. Algo o fazia estremecer ao ouvir aqueles versos de saudade. E aprendeu a sentir-se acolhido nos braços de suas memórias.
Aprendia tanto com ela. Era tão melhor perto dela, mesmo o perto sendo longe o suficiente pra não conseguir enxergar seu rosto. Tudo ao seu redor esboçava uma gama de cores desconhecidas, só por saber que ela estava por chegar. Sentia tanta dor no estômago por causa dela.
Agora ela se aproximava devagar, na velocidade que o suor frio escorria pela sua testa. E parou à beira do rio que movimentava o moinho para brincar com a água. Os pés delicados espirrando água pra todos os lados. E o chapéu que tampava qualquer outra visão, a essa altura, desnecessária.
Lembrou-se do ambulatório da fábrica e daquela sensação que tinha definido em sua cabeça como paixão e tentou comparar com aquele momento precioso. Não encontrou semelhanças, então achou que o frio na barriga e o suor frio eram simplesmente medo e foi se esconder.