Violeiros da Saudade - Parte VII - Quando a despretensão vira vício

Dormiu por 15 minutos, mas acordou como uma criança na manhã do natal. Não conhecia tanta energia e disposição, achava até que isso era coisa de criança. A criança que ele não pôde ser com certeza teria toda essa vontade de viver.

Deu-se conta de que ainda era madrugada quando pisou em sua varanda e pôde ver a lua a pino. “São onze e meia”, disse uma voz familiar. Virou-se para ver quem era e só viu sua viola apoiada na parede, ao lado da cadeira de balanço. Lembrou-se do que pensava ter sido um sonho e estremeceu novamente. Pensou em voltar pra dentro pra se proteger de novo, mas sentiu saudade daquela bela canção que lhe traduzia a alma. Sentou na cadeira de balanço e apanhou a viola pelo braço pedindo que ela o concedesse uma chorosa entoada.

Tentou lembrar a melodia que ouvira, mas logo se conformou que não conseguiria. Nada acontecia do modo como ele desejava a tanto tempo que, de tempos em tempos, conseguia lidar bem com isso. Decidiu então tocar a velha canção que pensava ser a canção de sua vida. Viajou entre aqueles quatro acordes e suas escalas, fechou os olhos e cantou com o coração cada sílaba dos versos do velho poeta, seu ídolo.

Naquele momento místico, descobriu que podia ver sem enxergar nada, apenas observava o horizonte. Os vagalumes perdidos, os mosquitos parasitas, os sapos, aranhas e lagartixas predadoras, grilos barítonos, sopranos, cigarras suicidas. Toda aquela dança natural despretensiosa, independente de sua presença, entendeu sua insignificância perante todo aquele mundo de montanhas e matagais.

Toda aquela reflexão o impediu de perceber que ao seu lado sentava alguém vestido de preto cobrindo o rosto com um grande chapéu. Um perfume de jasmim invadiu seu peito e fechou os olhos pra deixar uma lágrima escorrer por seu rosto. Sentiu algo lhe tocando os lábios e não quis ver o que era. Deixou apenas um sorriso bobo se instalar em seu rosto e algumas outras lágrimas correrem pelas bochechas até o pescoço.

Ficou ali, estático, feliz, chorando como a criança que não foi, sonhava acordado, flutuava pelo seu mundo imaginário, caminhava sobre pétalas de jasmim lembrando daquele perfume doce que já o ensinara tanto sem nem ter dito algo.

Abriu os olhos de leve e tentou alcançar no vazio uma mão amiga. Já iria propor que morassem juntos, tinha todo um plano na cabeça: “eu cozinho, lavo, passo, arrumo, trabalho, sustento, faço massagem e obedeço todas as ordens. Você, em troca, diz que me ama e faz mais dessas coisas com a minha boca que me fazem sorrir e chorar”.

Não encontrou ninguém, mas pode ver de relance um longo cabelo castanho fugindo às pressas pelo matagal...

Convenceu-se de que não foi correndo atrás daquela imagem porque estava sem chinelos. Acreditou tanto nisso que acabou sendo verdade. “Imagine só que loucura correr pelo matagal com os pés pelados? Só um louco faria isso... E se eu piso num sapo ou coisa parecida?”.

Abraçou sua viola e voltou a tocar, mas o som estava estranho. Parou pra olhar as cordas e encontrou um papel preso a elas. Leu e caiu de joelhos em sua velha varanda, derrubando no chão sua velha viola, deixou sua velha cadeira balançando sozinha e esqueceu a letra daquela velha canção. Na carta, dizia:

Lave minha alma

Que sente dores nas noites

Chora nas madrugadas

Ó senhor, minha alma

Coração já nem sabe

Por que a nuvem cobriu o sol

Lágrimas de saudade

Chama a lua pra iluminar minha canção

Meu amor, hoje se foi

Deixou uma carta por me amar

Foi passear com o vento

Dançar sob o luar

Olho aquela nuvem que me faz sombra

Será proteção à luz do sol

Ou meu amor a me olhar de lá

Daqui de baixo sempre vou te amar.

Luiz Otávio Esteves
Enviado por Luiz Otávio Esteves em 15/07/2013
Código do texto: T4388260
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