A partida
Naquela noite, quente como de costume, finalmente havia surgido a oportunidade e a coragem. Em cima na mesa de granito havia uma folha pautada, uma caneta azul, uma aliança de prata e uma faca de longo fio. Estava perfeitamente afiada. João permanecia sentado na cadeira defronte aos peculiares objetos e os olhava fixamente. Os cabelos desarrumados e a barba por fazer eram uma amostra do rascunho de homem que ali se postava. Apenas uma camisa branca abotoada até a metade lhe cobria o dorso. As calças jeans estavam velhas e desbotadas. O azulejo claro da cozinha estava gelado e seus pés estremeciam regularmente. De repente João se mexeu, vagarosamente, e levou a mão direita ao bolso esquerdo da camisa. Tirou de lá um maço de cigarros amassado e quase vazio. Fez pular um cigarro com um movimento ágil, adquirido com anos de experiência. Colocou-o entre os lábios e vasculhou a calça jeans à procura do isqueiro. Após uma breve batalha com seu bolso, conseguiu arrancar o objeto e acender o que ele chamava de “câncer num bastão”. Deu uma tragada, soltou a fumaça q se espalhou em volta da sua cabeça e relaxou. Olhou através da janela e espiou as estrelas. Grandes mistérios do universo. Eram lindas e o céu estava totalmente limpo.
João se voltou para a mesa, pegou a caneta e começou a escrever.
Aos meus pais, meu irmão, minha namorada e a quem mais interessar. Não quero que fiquem tristes. E quero que saibam que amor nunca me faltou. As razões desse meu ato são tão obscuras para mim quanto para vocês.
Geralmente as pessoas se matam por desespero. Depressão, decepções, tristezas, falência. Mas João estava calmo como sempre fora. Sempre tivera essa idéia fixa de suicídio, desde que se lembrava. Já imaginara, maneiras, motivos, cartas. O que aconteceria depois de morto. Tudo simplesmente acabaria? Iria para um lugar lindo, onde seria feliz pela eternidade? Sofreria? Não sabia, mas sabia que iria descobrir.
João deu a última tragada daquele cigarro e jogou a bituca pela janela. Fechou os olhos e se viu com 7 anos. Era o caçula. Seu irmão mais velho sempre fora destaque em tudo. Era inteligente, extrovertido, bonito,querido por todos. João era um menino tímido, franzino e não muito inteligente. Vivia em um mundo a parte, de heróis, desenhos animados e bonecos de ação. Cresceu à sombra de tudo o que poderia ter sido. Com a dificuldade em fazer amizades, sua casa tornou-se seu refúgio enquanto as outras crianças brincavam na rua, correndo, quebrando ossos, aprontando com os moradores. A escola tornou-se um lugar frio, de expectativas que não conseguia alcançar, aquele aluno que os professores qualificavam apenas como “mediano”. Não tirava notas vermelhas, mas também alcançava as mais altas. Não era bagunceiro, mas também não conversava muito com as outras crianças e nem se manifestava durante as aulas. Simplesmente passou pelos estudos e pelo microcosmo social das escolas. Certo dia ,em casa, absorto em pensamentos e brincadeiras introspectivas, encontrou um livro. O Alienista. O nome lhe chamara a atenção, mas ainda não compreendia o que diziam as páginas, cheias de frases de sentido incompreensível. A capa era de um bordô brilhante, muito bonita e o texto vinha bem ao centro. “O Alienista”. Pensava “quando conseguir, talvez quando for um pouco mais velho, eu o lerei”. Na verdade, nunca chegou a lê-lo.
Mesmo nas lembranças, João era passivo. Não se lembrava de nenhum feito ou acontecimento importante antes de partir. Teve alguns amigos, passou muito tempo em casa, uma ou outra namorada, conheceu alguns lugares, formou-se sem distinções na faculdade. Teve uma moto, um carro, sua casa estava prestes a ficar pronta. Tinha uma namorada que o amava, um emprego estável e conforto na casa dos pais. Mas o que faltava? Porque a necessidade de um ato tão extremo?
Abriu os olhos, a caneta ainda em uma de suas mãos, Levou-a ao papel e escreveu apenas:
“Sem mais. Adeus.”
Deixou a caneta, pegou a faca. Viu seu reflexo na lâmina, encostou-a no rosto e seus pelos arrepiaram ao toque frio. No final, tudo acaba nisso. Frio e escuridão. No final, estamos sós, seja qual for a maneira que cheguemos a ele. Levou-a ao pulso esquerdo. Não hesitou.
E a noite ficou vermelha. E a luz nos seus olhos precipitou-se ao infinito, e as pulsações de um corpo vivo cederam às cinzas da eternidade. E descobriu que partir é doce, e que somos poeira na imensidão da existência. A vida nada mais é do que uma luz, que para universo é o mais efêmero dos fenômenos. E João descobriu em si, na sua partida, no fim do ser que achou que era, a razão da necessidade do desencontro com a vida.