A LENDA DO CARI

CAPÍTULO 18

(do Livro Cassaram rs Ceroulas)

A cidade está em polvorosa. A notícia de que o Cari está nas proximidades da cidade tem deixada a população apreensiva, principalmente à noite. Fala-se que após a data da festa do Bom Jesus ele se amoitará entre Porto Novo e Santa Maria da vitória. Os colégios que possuem aulas noturnas estão liberando os alunos das aulas para que todos possam ir para as suas respectivas casas bem mais e ficarem em segurança.

Na verdade após às vinte horas não se vê uma alma viva circulando. Só o grupo de praças e alguns seguranças. Nem o Areais Junior se aventura a ficar nas ruas da cidade após às vinte horas. Os frequentadores do brega, Pingo D’água infelizmente estão passando a seco já que, coragem nestas horas é uma matéria muito exígua. Até os cães parecem perceber o clima de sinistra aparência que também resolveram sumir das ruas.

As portas das casas que costumavam ficar abertas até altas horas estão cerradas com suas fechaduras, travancas, taramelas e em várias casas, além destes instrumentos de segurança algumas estacas também reforçam as portas, janelas e portões. Os donos de cães prenderam os seus animais nos quintais porque segundo informações, o cari primeiro mata os cães antes de atacar as vítimas escolhidas.

Na noite sinistra de vez em quando ouve – se um lamento de um jegue ou o gritar de um cão abandonado sem casa e nem dono. O calar dá a impressão de que o animal fora devorado pelo Cari. Pelo menos na imaginação das pessoas tal cena pensada de maneira diferente sempre conduz para um mesmo final: A agonia do pobre animal sendo marretado e devorado pelo monstro gigante.

Areias Junior, acabou decretando o fechamento dos cancelões, o que provocou um congestionamento de romeiros no São Félix com isto um transtorno tremendo para todos eles. Atrasos nas viagens para Goiás. Alguns retornaram para Bom Jesus da Lapa para pedirem ajuda religiosa para o Bom Jesus. Nunca se tinha visto em Santa Maria tanto medo com relação a um monstro tão poderoso. Nem os lobisomens, as mulas sem cabeça provocaram tanto medo assim na população.

Afinal de contas quem é este tal de Cari? Bom, segundo as informações coletadas, ele incorpora o diabo e a alma de todos os jagunços mortos pelas volantes no nordeste. Usa uma marreta pequena mas que pesa vinte toneladas tamanha é a potência da sua pancada nas vítimas. Ele costuma triturar as cabeças e comer só os miolos delas. É capaz de viajar mil quilômetros e um minuto. Tem uma estatura mediana e é capaz de arremessar a marreta a dez mil metros e acertar o alvo e ainda recolher a marreta em dez minutos. Ele só está aguardando passar a meia noite do dia seis de agosto para atacar em qualquer lugar. Não se sabe ao certo se em Santa Maria ou Bom Jesus da lapa.

Esta situação perdura por três dias a fio até que Tião Sapateiro pede uma audiência com Areais Junior na Prefeitura para ter uma conversinha reservada no gabinete.

- O que este fabricante de ferraduras de couro quer comigo?- Pergunta para Dona Kalu.

- Num sei não Coronel, ele disse que é uma conversa em segredo.

- Mande este fabricante de ferraduras de couro entrar.

Conduzido pela dona Kalú, secretária particular de gabinete, Mestre Tião, conhecido como Tião Sapateiro, pai do Poeta Novais Neto, adentra ao gabinete de Areais Junior e, atendendo ao pedido do próprio Coronel, senta-se na cadeira de couro cru que já está estrategicamente colocada próxima da mesa cheia de papeis e carimbos rústicos, com uma xícara cheia de goma de rezina e outra cheia de grampos apropriados para prender papeis. A mesa do coronel é um tanto quanto desarrumada. Ao lado há um pequeno criado mudo com uma moringa de barro cozido cheia de água colocada dentro de uma bandeja de prata e arrodeada de alguns copos, também de prata cobertos com um guardanapo de seda italiana.

- Espero seu Tião, que eu não tenha que estar perdendo tempo com conversas de improviso porque tenho muito o que fazer; deixe as suas conversas fiadas para os sem que fazer que frequentam a sua ferramentaria. Desculpe. - É a força do hábito: Sua sapataria- completa ironicamente.

- Sem problemas Coronel! O que me trouxe aqui ou o que me traz aqui em apenas poucas palavras e os pouquíssimos minutos do seu tão valoroso e precioso tempo serão suficientes.

- Então desembuche meu caro!

- É sobre o Cari.

-O Cariiiiiiii!....- Responde meio assustado.

- Qual o motivo do susto Coronel? Pergunta Mestre Tião Sapateiro.

- Este capeta está tirando o meu sono!!!!!

De fato, o folclórico capeta não só está tirando sono do Coronel Areais Junior, mas, de muitos outros cidadãos honrados de Santa Maria da vitória: Os cidadãos frequentadores do Pingo D’água, o brega da cidade. O prejuízo das prostitutas só não é tão grande neste momento em razão da burla do horário. Quem não é casado vai mais cedo para o brega e já passa a noite inteira na gandaia retornando ao convívio da sociedade ao raiar do dia. O problema maior é para os casados. Como burlar a ordem natural das coisas? Com o advento do Cari, ninguém se arrisca a desobedecer ou mesmo desafiar o tal capeta da marreta mortífera e acabar com os miolos esmagados.

- Bem Coronel, este tal de capeta não existe.

- Como não!!!

- Não existe Coronel!!! Afirma Mestre Tião Sapateiro.

- Explique melhor Seu Tião!!! Pede

Mestre Tião Sapateiro, tira um pequenino livro de literatura de cordel, da algibeira e mostra a capa para o Coronel onde há um desenho de um pequeno ser com quatro chifres na cabeça, com quatro olhos e duas bocas, segurando com as duas mãos uma enorme marreta.

- É este o retrato do capeta? – Pergunta.

- Sim Coronel! Responde mestre Tião Sapateiro. Veja o título Coronel: a Lenda do Cari. É uma lenda de cordel escrita por um escritor nordestino e que foi o livro mais vendido em Bom Jesus da Lapa. É apenas uma lenda Coronel. Explica Mestre Tião Sapateiro.

- Quer dizer que fiquei três dias sem ir ao brega por causa....pra reza por causa de uma história mentirosa. E agora, como vou desfazer deste mico Mestre Tião? Pergunta meio preocupado.

- Não sei Coronel......O senhor é que é o prefeito...Replica Mestre Tião Sapateiro, levantando – se logo em seguida. Passar bem Coronel. E acompanhado de Dona Kalu, Mestre Tião deixa a prefeitura com a sensação de dever cumprido e ao mesmo tempo dando gargalhadas por dentro. Onde já se viu , um homem tão cheio de empáfia e de poder, ficara com medo de um personagem de lenda de cordel se deixar levar pela emoção do povo que se deixou levar pela narração de alguém que comprou o livro de literatura de cordel e contou a história para outrem que resolveu passar adiante e este passar adiante acabou por se transformar em uma cadeia que culminou com o medo geral da população de Santa Maria da Vitória.

Depois da saída do Mestre Tião Sapateiro do seu gabinete, Areais Junior se vê queimando as pestanas para poder sair da enrascada que se metera, quando se deixou levar também pelo folclore d Lenda do Cari. Mandou fechar os cançelões provocando assim transtornos para os romeiros do Bom Jesus que tiveram que atrasar as suas viagens de volta para casa.

Astuto por natureza, Areias junior chama dona Kalu e a manda datilografar um comunicado para ser lido na difusora da cidade. No comunicado, enquanto Areias dita o conteúdo do informe, dona Kalu va datilografando em toques lentos do tipo cata cavaco com apenas os dedos indicadores.

- Eu, Areais Junior, informo que o desastroso O chifrudo e rabudo da marreta, capeta em questão, vulgo Cari, foi preso pelos representantes religiosos exorcistas enviados pela cúria Soteropolitana. O salafrário das trevas foi aprisionado em uma garrafa de prata e enviado para o Vaticano para ser excomungado pelo Papa e incinerado. Qualquer comentário que surgir não passará de um mero folclore registrado em livro de cordel. Revogo neste ato a fechamento dos cançelões liberando assim o livre trânsito. Assinado: Areias Kelementhe Junior, Ilustríssimo Prefeito de Santa Maria da Vitória

A população ouve o anúncio feito pelo Antônio do Bó, e, aliviada, volta a sua rotina normal. A rotina de uma cidade regada pelas águas do Rio Corrente e ventilada pelas árvores dos gerais.

Lá na rua Teixeira de Freitas, precisamente na sapataria de Mestre Tião, os amigos e frequentadores dão muitas risadas molhadas com os goles de café delicioso, coado pela Dona Zifina, mãe de dona Janda e sogra do mestre.

_ Será, quantas ceroulas o Coronel tem borrado?

- Um homem tão valente e sanguinário, com medo de um personagem de cordel!!! Quer dizer não só ele como todos nós!!! Menos Mestre Tião....

- Eu também fiquei meio desconfiado, acreditando, desacreditando, mas não quis desafiar.... Vai que é verdade....nunca se sabe! Mas, assim que fui pra festa do Bom Jesus e, na subida do morro, lá em cima, vi um homem com um monte de livrinhos amarrados em uns cordões pendurados como se fossem varais e, conversando com ele, ele me contou a história de como escreveu o cordel do Cari.

Era uma história que a mãe contava para ele e os irmãos quando ele morava na cidade do Cari. Era outro personagem: O lobisomem. Um dia quando chegou um parque na cidade na cidade, houve uma briga com um dos empregados do parque que estava ajudando a montar os aparelhos de diversão, e nesta briga o funcionário que estava com uma marreta na mão, a atirou na direção do contendor e acertou uma pomba que estava empoleirada em um poste, esmagando a sua cabeça, por causa da tamanha força e a violência do arremesso.

Mais, já escrevendo cordéis, o escritor resolveu criar um personagem diferente que pudesse fazer sucesso e espalhar o terror nas crianças e, lembrando das histórias contadas pela sua mãe e do fato ocorrido em sua cidade no parque de diversões , acabou criando o famoso Cari em cordel fazendo um sucesso estrondoso na festa de romaria do Bom Jesus da Lapa.