a besta

ela sempre chegava farejando o ar em busca de comida, com seus beiços rosados e grandes e um sorriso mais doce que o de mona lisa. os que moravam na aldeia há pouco tempo, com suas armas poderosas, flechas e lanças lambuzadas de veneno, queriam atacá-la e, se possível, eliminá-la da existência para sempre. duas vezes tentaram e duas vezes foram contidos pelos moradores antigos não só daquela aldeia, mas dos habitantes de povoados próximos e até distantes, que vinham visitar parentes.

o motivo era que a besta não vinha – contrariando todas as expectativas e sua própria natureza – trazer ou fazer o mal: pelo contrário, segundo eles, ela trazia-lhes alegrias inenarráveis e prazeres jamais antes sentidos em suas vidinhas tristes e esquecidas totalmente do governador daquela ilha, que morava em nova iorque como um nababo com seu conselho de ministros e belas loiras compradas a pequenos maços de dólares na suécia.

mas um belo dia (ou feio, se quiserem), ela chegou muito indignada, xingando, fazendo gestos obscenos para alguém ou alguma coisa invisível e dizendo “se eu te pego, te mato, ladrão, sanguessuga do suor alheio, cão do Inferno!”. logo, homens e mulheres crestados pelo sol e pelo sofrimento, reuniram-se, em legião, ao seu redor, armados até os dentes (as crianças, com pequenas bestas), prontos para defenderem-lhe a dignidade bestial, provavelmente ferida, pois viram que desta vez não trazia alegrias nem os prazeres de costume. então ela fungou 666 vezes e lhes anunciou, tonitroante:

- amigos, camaradas, irmãos, amados meus, o governador da ilha me proibiu, de agora em diante, trazer-lhes alegrias inenarráveis e prazeres jamais antes sentidos!

fez uma pausa, tomou um gole de suco de maracujá que lhe alcançaram, e continuou:

- ele está me cobrando imposto de circulação de mercadoria, licença para exercício da atividade, alvará de localização, e mais outras 23 taxas. assim é impossível praticar a caridade! “perdi a viagem, vou voltar pra sicília”.1 “foi um privilégio ter estado com vocês”.2

dito isso, a besta, enxugando uma lágrima distante que insistia em não cair, foi se afastando, a trote lento, ao som melancólico de uma flauta, tocada tristemente pelo chefe daqueles nativos tão pacíficos e acomodados em sua decantada democracia racial e social. porém, naquele momento, o mais velho de todos, em desespero de causa, berrou para a besta, tremelicando feito uma marionete ensandecida, seu corpo magro e senil:

- linda, quem é que vai nos abastecer agora, com a indispensável droga que tanto nos ajuda a viver?

a besta, nesse instante, com o mais puro sorriso que a inocência já produziu, torcendo a cabeça igual às corujas, respondeu prontamente:

- O governo, ora!

1. Bordão da atriz Dinorah Marzullo, no papel de Dona Giovanna, mãe do mafioso Don Gorgonzola (Agildo Ribeiro) do Zorra Total, programa de humor da Rede Globo.

2. Bordão com que o jornalista Jorge Alberto Mendes Ribeiro (já falecido), no programa A hora e a vez de Mendes Ribeiro, veiculado de 1992 a 1999, na rádio Guaíba AM, se despedia dos ouvintes, em Porto Alegre, RS.

Don Aragone
Enviado por Don Aragone em 10/07/2013
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