A AGRESSÃO

Ninguém contesta que foi temeridade de J. J. W. me atacar naquela tarde de chuva, na rua Toledo. Vejas tu, caro leitor, que mesmo não sendo eu homem de robusta estatura, fui criado bebendo o puro leite das hipopótamas da África, quando meu pai, o Capitão Makenzie, designado instrutor de armas dos soldados ingleses naquela possessão, ali se encontrava com a família.

Isto me deu uma força sobre-humana, e eu podia, com pouco esforço e uma só das mãos, dobrar uma ferradura de cavalo como se fosse frágil lata. Só um homem conseguiu isto antes de mim: Leonardo da Vinci. Por isso foi temeridade de J. J. W. me atacar, da forma como me atacou, naquela tarde chuvosa.

Meu pai, quando ainda vivia, me fez jurar solenemente junto a uma grande árvore, que eu jamais usaria dessa força prodigiosa contra quem quer que fosse, e tal se deu, porque um dos touros de raça que possuíamos – orgulho da família - escapara do cercado, deitando-o no chão, após um ataque de fúria, e, já no pátio, arremetera contra Lyla, minha irmãzinha, com a intenção de parti-la ao meio.

Estando nas proximidades, ágil feito um tigre, não tive dúvidas: postei-me entre ela e o brutamontes, travei os pés na terra, despi o casaco e aguardei-o, intimorato e desafiador. A poucos passos de mim o animal, cego de raiva, cabeçorra abaixada e os grandes chifres rebrilhando feito facas, não viu quando me afastei de seu ataque num jogo sutil de cintura e esmurrei-o, sem dó nem piedade, bem no meio do focinho, fazendo soltar um formidável berro, dobrar as patas da frente e rolar alguns metros sobre a terra morna, antes de inteiriçar-se todo, exalando o último suspiro.

Os nativos que trabalhavam para nós, impressionados com o feito, rodearam-me cheios de risos, tapas nas costas e elogios em dialeto africano. Meu pai mandou carnear o touro - orgulho da família - e naquela noite todos comeram até se fartar. A partir dali, o nosso capataz francês começou a me chamar de “petit Hercules” (“pequeno Hércules”) e o apelido dura até hoje, seguindo-me aqui na bela Málaga, Espanha, onde vivo há cinco anos, produzindo vinhos doces e consultando as ciganas.

Por causa desse apelido, J. J. W. vinha me desafiando para uma briga nua (braço a braço, sem armas), onde quer que eu me encontrasse: no Clube de Pesca, na Casa dos Pães, na Praça Mayorca e até na Igreja de Nossa Senhora das Graças Noturnas, onde costumo assistir a missa domingueira.

Obsessoramente lá estava o homem: imbecil, zombeteiro e provocador, três defeitos que me desgostam em uma pessoa, mas a qual deixo viver sua vida, se não perturbar a minha.

- Covarde, Hércules de estrume é o que és! – dizia-me. – E posso provar o que digo, hoje à noite, na esquina da rua Toledo com a Pelegrera, se honrares o apelido que te deram!

Tudo ouvia em silêncio, engolia em seco e passava, sentindo pelas costas o escárnio de J. J. W. e seus amigos – pois nessas horas se cercava deles – para meter medo nos outros – diante de sua “coragem” ao desafiar-me, pois era eu naqueles tempos um mito: afinal, ninguém recebe o título de “pequeno Hércules” sem um musculoso motivo!

Na verdade, nunca tive medo de J. J. W. nem dúvida de que o venceria com uma só das mãos, mas estava sendo fiel à promessa que fizera, anos antes, a meu pai, de jamais usar minha força contra quem quer que fosse, animal ou pessoa, a não ser (abrira uma exceção o velho Makenzie) “em caso de vida ou morte, para salvar-te”. Não necessitando em nenhum momento salvar-me, continuava mantendo meu juramento: palavra dada é palavra cumprida.

Era à tarde. Cinco horas. Chovia. Vinha da Biblioteca Nacional onde fora ler a Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin, e do ponto onde estava avistei meu desafiante exatamente na convergência das ruas escolhidas por ele para o enfrentamento. Sequer me abalei ou pensei em desviar; avancei não tão rápido, para não pensar que era provocação, nem muito devagar, para não pensar que eu estava com medo.

Cercado de amigos de sua laia, gente sem ter o que fazer, malandros sedentos por verem o mal dos outros (o mundo é uma bacia imensa cheia deles), preparava-se, esfregando os punhos e flexionando os fortes bíceps, em ridícula exibição aos gaiatos das proximidades, que agora mais se aglomeravam formando grande público, antegozando um espetáculo inusitado de boxe naquela tarde monótona e úmida.

Não devo omitir, nessa altura, que J. J. W. pesava cem quilos de pura massa física e fora campeão de levantamento de peso daquele ano, erguendo de uma vez só 250 kg e sustentando-o por vários minutos. Trago-lhes essa informação de última hora, por um descargo de consciência, pois, como disse antes, ele não me causava susto nem medo. Assim, continuei meu passo serenamente.

- Pare agora! – esganiçou, com voz de mocinha violada, a pouco mais de dois metros. – Pare agora e lute como um homem, seu Hércules de estrume!

Mas, ao lançar-se sobre mim com a fúria de um herege, tropeçou no pé esquerdo e desabou no chão, com o cotovelo em V, nocauteando o próprio rosto e desmaiando instantaneamente.

Olhei severamente para a canalha sedenta de sangue, que debandou, temerosa, à maneira dos cães: com o rabo entre as pernas.

De toda essa empáfia fútil, desse faço-e-aconteço, desse bato-não-bato, fica-nos uma boa lição: quem quer brigar com alguém, que brigue, mas que tenha competência para não apanhar vergonhosamente de si mesmo!

Don Aragone
Enviado por Don Aragone em 10/07/2013
Código do texto: T4380739
Classificação de conteúdo: seguro