O planeta dos três sóis

Ano de 1977, um sábado do mês de março. O outono já se iniciara havia 5 dias, e ainda o mar estava com suas águas quentes, propícias a um banho.

Marcelo e Helena trabalhavam na mesma empresa de produção de alimentos. Ele era gerente de produção e ela era a faturista. Conheciam-se havia poucos meses e já parecia que eram amigos de infância. Mas a amizade de infância era bem diferente entre eles. Trocavam confidências e experiências de vida, embora jovens, ainda.

Tudo foi tomando vulto com uma conversinha meio sem razão de ser, a pretexto de resolução de um faturamento pendente. Helena foi à sala de Marcelo e trocaram, além de informações técnicas, olhares fortes.

O toque - aquele toque sutil, sem nenhuma pretensão - entre dois braços fez sair faísca nos olhos dele.

Um aviso meio sem jeito feito por ele — seu zíper está aberto! — a fez cair em si. Sim, cair em si, porque já estava nas nuvens.

Compôs-se rapidamente, para que não houvesse algum mal-entendido, algum pensamento de que ela fora ali para se insinuar. E realmente não era isso. Mas... a chama acendeu.

Depois de resolverem as pendências do faturamento, Marcelo a convidou para tomarem uma Coca-cola, numa lanchonete anexa a um posto de gasolina onde havia um lava-jato recentemente inaugurado. Helena aceitou, e foram tomar aquela Coca-cola geladíssima, enquanto o carro de Marcelo era limpo.

E se distanciaram do centro do Recife. Sem saber para onde iriam, seguiram até Candeias. Sempre a boa conversa, uma “conversa de periquito”, apenas para falarem e sentirem a voz - um do outro - como um bálsamo.

Chegando a Candeias, ainda não tinham noção do que fariam, e continuaram o passeio à toa até Barra de Jangada. Quando avistaram a Ilha dos Amores, o nome lhes incendiou o desejo. À sombra de uma árvore em um sítio deserto, pararam a Veraneio.

Estacionado o carro, não notaram, acima deles, uma enorme sombra que se avolumava. E foram envolvidos por um não-sei-quê, e foram transportados, sem saber por quê, a um local totalmente desabitado. Saíram da Veraneio e notaram estar num mundo diferente.

Ao primeiro exame, nada muito diferente. Apenas notaram estar num matagal, meio mata, meio caatinga, com uma clareira no local onde estavam.

A um exame rápido, sentiram a passagem anterior de alguém pelo local. Havia algumas garrafas de refrigerante e latas de sardinha, que reconheceram como tais, embora já semi-escondidas no mato rasteiro e com sinais de estarem ali por algum tempo, já.

Numa árvore próxima, viram gravadas duas letras: GR. E acrescentaram as suas abaixo: MH.

A sensação de estarem em um mundo estranho, no entanto, começou a tomar vulto a uma espiada mais detalhada.

As plantas ali encontradas, aparentemente semelhantes às plantas suas conhecidas, tinham algo diferente: parecia-lhes que tinham algum sentimento a mais, ouviam suas falas (movimentavam-se de forma harmoniosa ao som das mesmas).

Pareceu-hes, também, que tinham algum dom de comunicação, algo como telepatia, pois os dois (tanto Marcelo quanto Helena) vez ou outra voltavam-se para determinada planta, como se tivessem ouvido algum chamado.

No céu, a certeza de que estavam em um mundo desconhecido, e, não, no seu planeta Terra. Havia dois sóis: um forte (mais forte do que o nosso Sol) e outro fraquinho, de um branco pálido.

O medo, de início, se apossou dos dois. Ora... Estavam apenas querendo bater um papinho descompromissado... É certo que cada um tinha suas intenções ainda escondidas e inconscientes. Mas não pensavam que iriam tão longe apenas com aquelas intenções, nem se imaginariam num mundo tão diferente.

— O que está feito está feito. Estamos aqui, e não temos o que fazer por enquanto, senão curtir o momento — disse Helena.

Marcelo concordou plenamente. Afinal, essa era a primeira vez que estava saindo com outra mulher que não a sua. E logo na primeira vez...

— O que está feito está feito.

E se entregaram um ao outro. De início, obsequioso, medroso, tímido, Marcelo foi tocando o braço de Helena. A uma reação de aceitação, foi avançando... até que, não vendo onde poder repousar os corpos, e diante - ainda - do medo daquele mundo estranho, voltaram ao carro e se aproveitaram de sua ampla mala, que viraria uma cama ao rebaterem o assento traseiro...

Ao toque em sua blusa, Marcelo, reticente, pergunta:

— Posso...

Tem de imediato a permissão de Helena.

... E se sentiram noutro mundo, literalmente.

O passar do tempo veio mostrar outra característica daquele mundo novo que lhes tinha caído do céu (até então, eles não sabiam ao certo se não teriam sido eles a caírem do céu).

O dia apenas amenizava a luz, sem, no entanto anoitecer totalmente. O sol mais forte havia baixado no horizonte, o outro já estava no seu ponto mais alto, e eis que surgiu um outro corpo (não uma lua, não um satélite, mais uma estrela também). Ou melhor: um misto de estrela e planeta gigante. Tinha luz própria, porém mais pálida ainda que o segundo sol, mas seu tamanho aparente era duas vezes maior que aquele.

E a noite virou dia.

Ou melhor: a noite continuou dia.

...

Finda a noite-dia de primeiro amor, sentiram novamente (agora não mais com temor) a sombra gigantesca se avolumando sobre eles. Aquela mesma sombra que o transportara àquele estranho mundo.

E se viram levados de volta ao ponto em que estavam, na Terra, antes que tudo acontecesse, à sombra de um cajueiro.

Marcelo, agora já senhor de si (afinal, fora a primeira vez que tivera em seus braços uma outra mulher), fez, gracejosamente, uma pergunta de louco ao cajueiro que lhes fazia sombra.

Lembrando-se da sensação - que tivera naquele planeta - de que estiveram sendo observados, indaga, alto:

— Cajueiro, tu tens olhos? Podes dizer o que viste?

Helena, penetrando os pensamentos dele, se fez interlocutora daquela árvore que - diz a lógica - não falaria jamais.

— Vi um casal se amar e, na sombra dos meus galhos, desse mundo se isolar.

O inusitado da resposta fez Marcelo se animar e montar um pretenso diálogo homem-natureza, tendo a voz de Helena como a interlocutora daqueles seres animados ao redor.

Distanciou-se um pouco, e perguntou (da mesma forma que fizera antes) a um coqueiro que ali se encontrava, balançando suas folhas ao vento.

— E tu, coqueiro, escutas? Diz-me, então, o que ouviste.

Novamente a voz de Helena, agora como interlocutora do coqueiro:

— Daqui nada pude ouvir. Eu não sei do que tu falas, pois nada pude escutar.

Ela sabia, pela experiência única (até aquele momento para ela) que estiveram literalmente em outro mundo e, portanto, nada ao redor deles era testemunha daquela estranha viagem e das conseqüências da mesma.

E continuaram a brincadeira, trocando diálogos com o capim, com o vento, com a chuva (que caíra anteriormente, como puderam notar pelo chão ainda bastante molhado).

— E tu, aqui neste chão, o que sentiste, capim?

— Algo nunca imaginado! Um casal aqui deitou e eu não fui nem tocado...

Avançou na sua loucura e dirigiu-se, então, aos seres inanimados que lhe faziam companhia.

— Mas o vento está lembrado do casal aqui deitado?

— Eu balancei o coqueiro, agitei o cajueiro, o pó do capim varri, mas no casal não toquei. Esse casal eu não vi.

E diante de uma chuva fina, ainda presente, pergunta:

— Aqui choveu nesse dia. A chuva nada notou?

Ouve, de pronto, a voz de Helena, assumindo-se chuva.

— Eu caí sobre o coqueiro e também no cajueiro, sobre o capim me deitei, mas o casal não molhei. Eu não o vi, não, senhor.

E se sentiram loucos. Dois jovens loucos, perdidamente apaixonados, a ponto de seu amor os ter transportado para outro mundo.

A nova inspiração poética de Marcelo o faz continuar sua conversa com a natureza, agora um monólogo de súplica.

Mar, ó mar, ouve o grito

que da boca não saiu,

mas que dentro do meu peito

ecoou, ninguém ouviu.

Chão, ó chão, enterra fundo

o que tenho a te dizer,

para que não venha ao mundo

meu segredo, meu viver.

Helena o acompanhou nessa súplica, cúmplice de seus sentimentos, dizendo:

E tu, meu amigo vento,

que bem sabes de quem falo,

que conheces seu aroma,

que sabes do nosso amor,

que nos ouviste falar,

que nos sentiste sofrer,

a ti eu peço: não digas

o que tenho a te dizer.

...

Ano de 2006, novembro, uma quinta-feira...

Marcelo, agora em outro trabalho, lembra e relembra aquele louco amor passado e vivido em outro mundo. Durante todo o tempo transcorrido, buscou e rebuscou todos os livros de Astronomia, de Geografia, de Esoterismo e não encontrou nada que se parecesse com o mundo que os dois tão loucamente conheceram.

Ele tinha imaginado que poderiam ter estado em algum planeta que orbitasse as estrelas gêmeas Alfa, da constelação do Centauro. Mas nos livros de Astronomia só eram mencionadas duas estrelas: uma, de grande luminosidade e ainda jovem, e outra, considerada uma anã branca, ou seja, uma estrela pequena, já no fim de sua vida estelar, com pouca luz aparente a mostrar. Não havia a terceira que o casal presenciou.

Nenhuma informação, também, de algum planeta, estrategicamente preso pelo centro de gravidade do conjunto de estrelas, numa inversão astronômica, com as estrelas orbitando o planeta.

Voltam os pensamentos. Agora, passados quase trinta anos, Helena está vivendo a sua vida e apenas trocam palavras e galanteios ao telefone em situações especiais.

Ela ainda o considera seu grande amor, sua grande paixão, mesmo mantendo a relação apenas no campo dos pensamentos, da imaginação.

Não mantiveram aquele romance tão loucamente nascido. A chama manteve-se acesa, mas as condições adversas (suas famílias, outras obrigações sociais, etc) não deixaram florescer algo que nascera e frutificara num ambiente tão inusitado.

...

Novembro, quinta-feira. O celular toca.

— Oi, Helena!

— Oi! Faz tempo, heim?

Helena, de férias, estava à beira-mar, queimando um pouco o corpo. Já não era aquela moça sensual, mas ainda guardava o modo de falar, a mesma voz, quando se dirigia a ele.

Marcaram outro encontro, agora em outra praia, em outro local.

Local e data combinados, ali estavam eles, frente a frente, depois de tantos anos, tantas lembranças isoladas, tantos desejos contidos.

Iniciaram sua conversa, guardada e bem guardada no recôndito de cada um, para ser solta, como em borbotões, se não se tivessem dado conta de que, assim, não conseguiriam conversar.

Até que se acalmaram e entabularam a conversa.

— Lembras, Marcelo, daquele dia? Só não tem o cajueiro por aqui.

— É, mas os personagens são os mesmos, as sensações continuam existindo...

E, ansiosos, esperaram em vão ser transportados àquele planeta, onde tudo começara. A conversa foi boa, à espera de outra transferência, mas nada aconteceu de especial.

Não chegaram à frustração, porque o reencontro, em si, já conseguiu aplacar um pouco a saudade.

O planeta dos três sóis ficou na lembrança.

Sim... O terceiro sol apareceu. E tomou corpo, e se desgarrou, indo a outra constelação.

Agora as três estrelas estão separadas. Cada uma em seu mundo.