Carro de Boi

Carro de Boi

Dia de música, lá vem ela ao longe, parelha de aspas grandes, nelores de puro sangue, dóceis como tem que ser, num ritmo cadenciado para não destoar o som, o inconfundível gemer do atrito, machucando o coração do caboclo que chora suas lembranças.

As melodias podem variar, gaita, pombo, baixão, coisa de prosa de caboclo, indecifrável para ouvidos da cidade, do tempo que se ia de um lado a outro desse Brasil, sem pressa, sem agonia, sobrava tempo pra ouvir a juruti, os causos e as prosas de janela.

O instrumento é simples, feito de madeira e ferro, mas quanta paixão pra construir o cantador, seu canto chega muito antes de poder ser visto e se não canta é tranqueira, coisa inútil, e o bom cantador não destoa, não desafina, quando com muita carga canta de gaita, é hora de aliviar o peso ou então estoura os bois, mata os bichos no esforço, quando canta de baixão vão naquele passo de boi, por lonjuras inacabáveis por mundão afora, em paz com o mundo, no trabalho corriqueiro canta de pombo, nem pra cima nem pra baixo. Por isso que canta, se não canta não é carro, é carroça.

Ao carreiro fica a sabedoria de interpretar esse cantar, seu ouvido de maestro determina o bom andar, a ele também cabe a honra de ser único, tocar carro é diferente de tudo.

Apurando meus sentidos sinto que está cada vez mais perto, corro até a porteira, não ei de perder tanta formosura. Na estradinha de chão batido não levanta poeira, seu andar macio nem mexe o chão, tento identificar o som... vem de pombo... Avisto ao longe as aspas, seis bois, os da frente são menores, mas são espertos, os do meio são mais bravos e os últimos os de confiança, assim as três parelhas de bois se equilibram, o cantar já mais alto amolece o coração.

Um aceno de chapéu, cigarro de palha no canto da boca, a rédea solta, boi sabe andar sozinho, corro em sua direção e me penduro no carro, o carreiro abre um sorriso de satisfação pro moleque levado.

Apeio do carro e vejo ele sumindo na estradinha e a música ainda continua por tempo sem fim, volto pra dentro de casa, e agora volto pra dentro de mim, se nunca ouviu o cantar de um carro de boi, desculpe mas não conseguirei descrever...

Nesse mundo de internet, aviões a jato, trem bala, velocidade do som e quem sabe daqui a algum tempo velocidade da luz, não tem espaço mais pra carro de boi, e em alguns lugares que ainda não chegou essas modernices, num canto qualquer embaixo de uma árvore ainda deve repousar um carro, com seu cabeçalho devidamente apoiado em algum lugar, afinal de contas como é sabido por todos, cabeçalho no chão atrasa a vida do carreiro.