Violeiros da Saudade - Parte III - Quando os joelhos tremem e o estômago dá risada
Perguntava-se se seria a mesma pessoa que lhe ajudou a se levantar e tentou lembrar o rosto dela, mas não conseguiu. Estava tão concentrado em si que seu egoísmo o impediu de olhar nos olhos daquele que o ajudou. Ter consciência disso lhe fez sentir um mal-estar súbito, sentou na beira da estrada tentando respirar, mas não conseguiu. Estava tão concentrado em não sujar seu uniforme já imundo que sua vaidade o impediu de estender a mão pedindo ajuda, pois estava com as duas apoiadas no chão. Tentou gritar, correr, chorar, mas não conseguiu.
Ouviu, ou pensou ouvir, alguém lhe dizer "vem, levanta, eu te ajudo", sentiu, ou pensou sentir, uma mão em seu ombro lhe dando apoio à mão suja de terra, viu, ou pensou que viu, uma pessoa alta e magra vestida de preto lhe ajudando a subir no cavalo para galopar até o ambulatório da fábrica, acenou, ou pensou que acenou, olhou para a enfermeira que o atendia e desmaiou.
Acordou com sua cabeça latejando, não havia mais tempo para ficar deitado, tinha que correr para o seu posto na fábrica - seu salário no fim do mês, mixaria, dependia disso. Tentou levantar e logo foi puxado de volta à maca. A enfermeira não o deixaria levantar, não era hora. Perguntava-se se estaria num daqueles programas de TV onde contam que as pessoas são sequestradas e já achava que a enfermeira era um alienígena que ia implantar coisas que ele não sabia o nome em sua cabeça.
Sentiu um desconfortável desespero lhe subindo pelas carótidas e agora tremia naquele leito seco enquanto lembrava-se de sua mãe, doente no hospital, suas últimas três vacas que, àquela altura, já eram adubo, seu cachorro falecido, aquela folha de alface que agora lhe tocava o fundo da garganta querendo voltar ao chão.
Gritava como se pudesse levantar dali e correr de volta pra casa, mas a preocupação que via nos olhos da enfermeira lhe trouxe um ar de compaixão que há tempos não sentia. Decidiu que ia ficar por ali mesmo, pois pelo menos poderia receber a atenção que tanto sentia falta. Foi se acostumando àquele carinho artificial, dispensado a todos por responsabilidade da profissão e nada mais que isso. Achou que estava apaixonado, jurou amor eterno à enfermeira e lhe beijou a face. Foi aí que percebeu que o turno de sua enfermeira já havia terminado e agora quem lhe cuidava era um “bolo de rugas, cheio de curvas obtusas”, como ele mesmo definiu.