Memórias de Uma Vida
Éramos as crianças da Vila Macedo. Nascêramos ali, e nos conhecíamos desde sempre. Vila Macedo era uma vila de casas geminadas, cada qual de uma cor diferente, com pequenos jardins na entrada, vaga para um carro em cada um dos pequenos e estreitos terrenos, e caminhos de cascalho até a porta da frente. A rua era larga, calçada de paralelepípedos e ornada de ipês que em setembro, pintavam a vila de amarelo. Um lugar encantador! Até hoje, agradeço pelo privilégio de ter crescido em um lugar assim, tão bonito.
Éramos um grupo de treze crianças: seis meninos e sete meninas, com idades entre oito e treze anos. Eu e minha irmã Jane vivíamos na primeira casa da vila, à direita, a casa lilás. Na casa branca, moravam os irmãos Caio, João e Mário. Na casa rosa, a menina Bruna, e na verde, as irmãs Tânia, Marta e Joana. Gregório era da casa azul, enquanto Márcio vivia na amarela. Débora e Fernando vivam na última casa, que ficava no fim da rua, a casa salmão. Havia outras casas nas quais moravam casais idosos, sem crianças. estas casas eram geralmente, brancas ou cor-de-rosa bem pálido.
Na época em que tudo aconteceu, no verão de 1967, a mais jovem das crianças era a menina Débora, com oito anos, e entre os meninos, Caio era o mais jovem, com nove. Eu e Gregório, ambos com treze anos, éramos os mais velhos. Minha irmã Jane tinha onze anos.
Era a época das férias de final de ano, e a vila estava em polvorosa, pois nossas mães andavam ocupadíssimas com a decoração para a festa de natal, que aconteceria dali a uma semana. Lembro-me bem das janelas abertas, as cortinas de voil esvoaçantes, música de rádio vindo das casas (colocávamos todos os rádios na mesma estação, para que pudéssemos ouvir música enquanto trabalhávamos) e ás vezes, uma das mães chegava com pratos de sanduíches, bolo e refresco para todos. No comecinho da noite, o movimento de nossos pais - os maridos- chegando em casa, e nós, crianças, nos recolhendo para tomar banho e jantar. A vida era perfeita e imaculadamente branca, com toques de cores em tons pastel.
Certa noite, após o jantar, cheguei até a varanda da casa para olhar o céu, que ainda tinha algumas partes rosadas junto ao horizonte. Eu gostava de ver as primeiras estrelas surgindo, e costumava passar estes momentos na varanda de casa, até que escurecia totalmente. Ali, eu sonhava com muitas coisas que uma pré-adolescente sonhava: namorados, roupas novas, as bandas da moda, as festinhas, os colegas da escola. Eu estava assim, pensativa, naquele comecinho de noite de dezenove de dezembro de 1967, quando percebi que era observada por alguém parado na encruzilhada, logo depois da vila, sob a luz de um poste. Era um menino com as mãos nos bolsos da calça de tweed, usando camisa branca de mangas longas, abotoada até o pescoço, e apesar de eu não conseguir enxergar seu rosto muito bem - já começava a escurecer-, pude ver que tinha cabelos cacheados e claros, quase até os ombros, e que era um tanto alto e esguio. Estávamos a mais ou menos uns bons vinte metros de distância um do outro. Não consegui adivinhar sua idade. Ficamos nos olhando por algum tempo, até que eu entrei, sentindo um leve arrepio. Quando cheguei à janela para olhar de novo, ele não estava mais lá.
Na manhã seguinte, enquanto ajudava a pendurar enfeites em uma das árvores, eu o vi de novo. Lá do alto da escada, onde eu me encontrava, pude ter uma visão melhor de seu rosto, e vi que era um menino bonito. Também percebi que ele não tirava os olhos de nós - principalmente, de mim - e que deveria estar entre os quinze e dezoito anos de idade.
Ao descer da escada, chamei minha irmã, e apontei o jovem que nos observava. Ela achou melhor falar com nossa mãe:
-Mamãe, Roseane acaba de ver um garoto estranho nos observando... bem lá!
Mamãe seguiu a direção que Jane apontava, e de repente, o garoto tinha sumido. Mas no final da tarde, ele voltou a aparecer. Vestia a mesma roupa do dia anterior, e notei o quanto elas pareciam inadequadas a um menino daquela idade... talvez, formais demais
. Nossas mães já tinham entrado, e nós, crianças, resolvemos nos aproximar dele. Gregório logo perguntou-lhe o nome, e ele disse chamar-se Antônio. Nós nos apresentamos, e logo estávamos todos conversando animadamente. As crianças são assim... ele nos disse que morava em uma rua próxima dali, mas que não havia gente da nossa idade em sua rua. De repente, uma certa tristeza manchou-lhe o sorriso, mas acho que só eu percebi. Achei que pudesse ser alguma lembrança triste, mas também achei que por um momento, ele pareceu confuso ou assustado, olhando em volta ansiosamente. Disse que precisava ir embora, mas prometeu-nos que voltaria.
No dia seguinte, quando saí de casa com Jane, ele estava na rua, jogando futebol desajeitadamente com os meninos, que riam de sua falta de habilidade. Ao ver-me, notei que seus olhos me seguiram. Eu disse um 'oi' desajeitado, e senti meu rosto queimar. Jane, olhando de mim para ele, logo percebeu tudo, e começou a implicar comigo: "Roseane está gamadinha no novo garoto!" Eu perdi a paciência com ela, mas logo o assunto tinha sido esquecido, e estávamos todos reunidos, os mais velhos sentados na calçada, conversando, enquanto as crianças menores brincavam por ali.
Antônio contou-nos que tinha ficado ausente por muito tempo, e que ao voltar, encontrara tudo muito diferente; por exemplo, as casas da sua rua estavam velhas e mal-cuidadas, e não havia mais crianças. Os vizinhos eram quase todos diferentes. Ele ficava sozinho a maior parte do tempo. Nós o acolhemos como se ele sempre tivesse morado ali conosco; mas aquela tristeza no fundo dos olhos dele me comovia. Eu não o conhecia o suficiente para indagar sobre sua vida, mas ele me deixava cada vez mais curiosa - e apaixonada! E eu sabia que estava sendo correspondida por ele.
Ele passou a vir todos os dias, e nos tornávamos cada vez mais íntimos. Certa vez, ficamos sozinhos por alguns instantes, e ele pegou em minha mão. Ficamos ali, nos olhando, meu coração ardendo em brasas tanto quanto o meu rosto. A mão dele segurando a minha era fria, e achei que fosse pela emoção do momento. Acho que nós íamos nos beijar, mas de repente, percebi a porta de minha casa se abrindo; era mamãe, chamando-me para lanchar, e rapidamente puxei minha mão, soltando-a da mão dele antes que ela nos visse juntos. Para disfarçar meus sentimentos, virei-me de costas para Antônio e fingi que estava me encaminhando para casa, e entrei no portão. Ao olhar para trás, vi que ele tinha ido embora.
Tentei agir naturalmente, e ao perceber que minha mãe não nos tinha visto de mãos dadas, senti alívio.
No dia seguinte, Antônio não apareceu. Percebi o quanto sentia falta dele, e também, que nada sabia sobre ele; dissera que morava em uma rua próxima dali, mas nunca nos disse qual era a rua. Se ele não voltasse mais, eu nem saberia onde procurá-lo! A possibilidade de não vê-lo nunca mais me enchia de angústia. Meu estômago dava voltas, conforme o dia ia terminando e ele não dava qualquer sinal de vida.
No dia 24 de dezembro, após três dias de ausência, Antônio apareceu numa manhã chuvosa. Veio nos desejar um bom Natal. Nós o convidamos para passar o natal conosco, dissemos que a festa da rua era muito boa, um acontecimento familiar, tradicional e cheio de boa comida. Ele sorriu-nos seu sorriso mais triste, dizendo que infelizmente, não poderia comparecer. Disse que gostaria muito, mas que não poderia, simplesmente. Ficamos decepcionados, pois todos nós já gostávamos dele como se ele fosse um de nós (principalmente, eu) mas nenhum de nossos argumentos o convenceu.
Na tardinha do dia 25, ele voltou. Eu estava na varanda, esperando as estrelas, como de costume, quando o vi exatamente no local onde o vira pela primeira vez. Desci as escadinhas da varanda, e fui ter com ele. A rua estava deserta - a maioria das crianças e adultos estava exausta, pois passáramos a noite toda acordados na festa de rua, e depois, tivéramos um lauto almoço de natal. Fui caminhando em sua direção, e sobre nós, um céu maravilhoso e colorido de verão. Eu tinha plena consciência do quanto estava bonita em meu vestido novo azul-claro, cujas saias rodadas e esvoaçantes formavam uma leve nuvem de tecido à minha volta.
Parei diante dele. Sabia que algo estava para acontecer. Foi algo muito estranho; nós nos olhávamos profundamente, minhas mãos, nas dele, e de repente, eu me lembrava de coisas que vivera junto com ele, mas coisas que eu, ao mesmo tempo, sabia jamais terem acontecido. Eu via a fachada de uma casa enorme e linda, e um jardim cheio de roseiras floridas, onde havia uma fonte de mármore com a figura de um anjo segurando uma ânfora, de onde jorrava água; via-me mais velha, sentada no grande sofá da sala junto com ele, mas nossas roupas eram antigas, diferentes. Via pessoas, e ao olhar para elas, adivinhava seus nomes. Algumas me causaram um sentimento forte de saudade extrema, e eu chorei. Tudo aquilo se passava em minha mente, tudo rápido demais, e no entanto, eu sabia que era verdade. Tinha acontecido!
Lembrei-me de tardes de verão junto a um lago, sentados à sombra de um imenso carvalho; um grupo de pessoas rindo e fazendo picnic. O sol e o céu azul refletindo-se no espelho do lago. O cheiro forte de eucaliptos.
Ele me abraçou. Seus lábios tocaram os meus suavemente. Vi que ele chorava. Sabia que aquilo seria uma despedida. Ele murmurou, olhando-me nos olhos:
-Minha querida Aurora... eu a reencontrei, finalmente. Mas agora vivemos em mundos diferentes...
-Antônio... eu... o que está acontecendo? O que significa tudo isso?
Um vento começou a soprar forte. Escutei a voz de meu pai me chamando da varanda da casa. Eu o olhava ansiosamente, procurando uma resposta. Ele não dizia nada, apenas me olhava com seus olhos tristes. Senti uma mão sobre meu ombro, e quando me virei, vi que era papai. Ele me olhava de um jeito intrigado, perguntando-me o que eu estava fazendo ali, no meio da rua, falando sozinha.
Antônio desaparecera novamente.
Uma semana se passou, e o episódio da rua foi considerado como um momento de confusão, devido à exaustão . Antônio não voltou mais. Caí de cama, com uma febre estranha que deixou-me delirante, e me levou novamente àquele estranho e maravilhoso mundo onde eu era uma outra pessoa, e a vida, bem diferente. O mundo onde Antônio vivia.
Num de meus delírios, eu vi novamente a fachada da casa, e soube imediatamente que eu sabia onde ela ficava! A partir daquele instante, minha febre passou, e eu fui melhorando aos poucos. Assim que me vi curada, saí um dia de manhã dizendo à minha mãe que ia encontrar uma amiga da escola. Dirigi-me, resoluta, ao bairro aonde eu sabia que a casa se localizava. Parei diante dela, o coração aos saltos. Abri o portãozinho de ferro, que pareceu tão familiar entre meus dedos hesitantes, e bati àquela porta que eu cruzara tantas e tantas vezes. Notei que o belo jardim tinha se transformado em ruínas, mas a velha fonte ainda estava de pé.
Uma senhora idosa abriu uma greta da porta, e ao olhar para mim, vi que ela arregalou os olhos, levando a mão à boca, num gesto de absoluta surpresa. Ela abriu a porta, e sem jamais tirar os olhos de mim, convidou-me a entrar.
Olhei em volta: reconheci aqueles móveis, o grande sofá florido, agora desbotado, as janelas fechadas cuja vista eu já conhecia. Senti o cheiro de coisas velhas, ouvi ecos de risos e de vozes conhecidas e amadas. Ela me convidou a sentar. Ficamos diante uma da outra, estupefatas. Foi quando eu repentinamente a reconheci, mas ao mesmo tempo, a memória me fugiu imediatamente. Ela me perguntou:
-Você deve ser neta de Aurora.
Lembrei-me de que Antônio me chamara por aquele nome na última tarde em que nos encontramos. Eu disse:
-Quem é Aurora?
Ela não respondeu. Parecia fascinada.
-Eu vim à procura de Antônio!
Ela levantou-se com dificuldades, e disse zangada:
-Quem é você?
Eu me levantei também. Estava confusa e com medo de que ela me expulsasse dali. Expliquei-lhe, desajeitadamente, os acontecimentos dos últimos dias. Contei-lhe sobre como Antônio aparecera de repente na Vila onde eu morava. Contei-lhe das sensações que tivera na última vez que estivemos juntos. Falei-lhe das memórias que eu tivera, sem nunca ter vivido aqueles acontecimentos. Enquanto eu falava, ela ás vezes murmurava: "Não pode ser..." Quando terminei, eu estava aos prantos, e ela fez sinal para que eu me sentasse novamente. Saiu da sala, e depois, voltou com um copo de água com açúcar, que eu tomei, e um pequeno baú de madeira. Colocou-o em meu colo, dizendo para que eu o abrisse, o que obedeci.
Estava cheio de fotografias. Nelas, as pessoas com quem eu sonhara. Antônio. Eu, um pouco mais velha, mas sem dúvida, era o meu rosto. No verso de uma das fotos, uma data: 1890. Olhei para ela, pedindo uma explicação.
-Meu nome é Ondina. Sou a avó de Antônio. Meu neto faleceu ainda muito jovem, e Aurora - a moça da foto - também. Ambos sofreram um acidente de charrete. Eles iam se casar. Voltavam para casa à noite, e foram surpreendidos por uma tempestade. O cocheiro disse que os cavalos se assustaram com um raio, e a carruagem virou em uma ribanceira. O cocheiro conseguiu pular a tempo, mas eles morreram. Caíram no abismo.
Eu tive relâmpagos daqueles acontecimento indo e voltando de minha mente. Fiquei muito assustada, e ela percebeu. A fim de tranquilizar-me, a velha senhora sentou-se ao meu lado, segurando minhas mãos.
-Jamais pensei que fosse viver para ver este dia! Você está aqui novamente, Aurora. isto significa que Antônio ainda vive, em algum lugar, e que eu o verei novamente, em breve... verei a todos eles!
-Meu nome é Roseane!
Ela assentiu, enquanto ainda segurando-me as mãos, lágrimas rolavam em seu rosto:
-Eu sei, querida, eu sei... mas eu tenho certeza que você foi Aurora. Em uma outra vida!