Cobertô? Nóis qué sim!
No sertão nordestino o inverno é bem vindo quando se fala de chuva. Mas quando o frio é o ator principal, aí é que ninguém confunde “embrulho com moqueca”.
Este é um conto real, de uma mulher que sentia muito frio, embora tivesse todos os recursos para amainá-lo em sua casa. Só não tinha lareira. Uma lareira no sertão da Bahia só iria empatar a cozinheira de cozinhar, a lavadeira de tirar da chuva a roupa quase seca, o bebê desandava a chorar e a balbúrdia ia ser uma coisa de Deus nos acuda.
Alvalinda era assim chamada; em casa, todas as mulheres tinham Alva no início do nome, apesar de morenas. Logo no início de junho ia visitar as lojas de artigos para cama, mesa e banho; mas o que ela ia comprar mesmo, eram cobertores. Nem caros nem “fubecas”, daqueles que servem para aquecer as perninhas magras das crianças que moravam à beira das estradas.
Enchia a mala do carro com os pacotes: com um, com dois, com três e com quatro. Afinal de contas, família nordestina é grande e o frio era daqueles que parece ponta de faca encostando nos ossos. Claro que ela usava edredons, quanto mais grossos, melhores. Mas ela merecia; acreditava que cada um passa o frio que merece. Caso Alvalinda esteja ainda na superfície global, talvez deva continuar pensando assim.
Tarde fria, daquelas boas de namorar, mas ela saiu; os cobertores já ficavam no carro, fosse aonde fosse. Para aqui, para mais adiante, tinha os “fregueses” certos. Nessa tarde porém , estava descontente, zangada com Deus e com ela própria. Mandou o namorado pra casa, afinal era sábado dia de ficar com os amigos. E ele foi, mal contendo o ciúme. Para quem ele pensava, que ela iria oferecer os cobertores, só a mente insegura e doentia dele, sabia.
Ia ela beirando uma estrada de chão, porém o asfalto ficava mais alto. Viu uma coisa parecida com uma casa, de compensado, papelão, zinco, panos e outros materiais. Seu frio aumentou: Como alguém pode morar assim, com um frio desse? Sentado em um banquinho que nem era um banco, mas um pedaço de tronco, um senhor sem camisa, magro feito vara verde, com uma faca na mão, picava algo.
Alvalinda seguiu em frente e, no primeiro contorno, voltou, desceu com cuidado a rampa que separava o asfalto da casinha, viu que o barro mole podia fazer o carro derrapar, pensou. Felizmente, parou, lado do carro com a frente da “casa”. Um molequinho que só tinha olhos e barriga (a barriga pela farinha, os olhos pareciam fora das órbitas, devido à magreza da carinha). Só vestia uma sunga, pés no chão. Logo vieram mais quatro para a “porta” da casa.
-Arguma coisa moça? Perguntou o homem
-Essas crianças são suas?
- são sim, senhora prumodediquê?
- prumode eu queria saber se eles não estão com frio
- tão não, moça, já tão acostumado, nóis mora aqui faz tempo...
- e como agüentam o frio?
- nóis nem sente mais...
- e quando chove muito, esse papelão e panos molham, como fica?
- fica cumo Deus qué, nois troce o pano, vai nas loja catá caixa e faiz tudo dinovo; sorriu largo com um “taco” de charuto na boca e os dentes aqui sim, ali não.
Alvalinda que já estava macanbúzia, sazonalmente cor de cinza e com a alma acorrentada na tristeza, disse:
- tenho aí no carro cinco cobertores. No inverno saio entregando a quem precisa. O senhor aceita?
- Mai craro qui nois percisa moça.
Ela sorriu um pouco, aquecendo o coração e brincou: mas o senhor não disse que você e sua família guentam o frio?
- ahahahah ele gargalhou e completou: nóis guenta, mai nun somo de ferro, né? Cadê os cobertô?
- na mala do carro, pode pegar.
E foi uma correria só; o menor escorregou na lama, e ficou pretinho-marrom
-E agora? Disse ela? Está todo sujo!
-Eu limpo cumcobertô dona.
Não deu para agüentar... A tarde estava ganha. Um sol de quatro horas, safado e fraquinho chegava ao céu para apreciar a festa.
- Hoje nóis drome bem, né meu nêgo? Disse a mãe das crianças e o pai escabriado, mostrou os dentes aqui sim e ali não, de novo.
- Estou indo, até logo!
-Inté, responderam. Deus lhe pague!
- Já pagou, respondeu Alvalinda, com lágrimas de alegria rolando pela face. Voltou para casa e teve a melhor noite de sua vida.
Imagem: crianca.ne.paraiba
No sertão nordestino o inverno é bem vindo quando se fala de chuva. Mas quando o frio é o ator principal, aí é que ninguém confunde “embrulho com moqueca”.
Este é um conto real, de uma mulher que sentia muito frio, embora tivesse todos os recursos para amainá-lo em sua casa. Só não tinha lareira. Uma lareira no sertão da Bahia só iria empatar a cozinheira de cozinhar, a lavadeira de tirar da chuva a roupa quase seca, o bebê desandava a chorar e a balbúrdia ia ser uma coisa de Deus nos acuda.
Alvalinda era assim chamada; em casa, todas as mulheres tinham Alva no início do nome, apesar de morenas. Logo no início de junho ia visitar as lojas de artigos para cama, mesa e banho; mas o que ela ia comprar mesmo, eram cobertores. Nem caros nem “fubecas”, daqueles que servem para aquecer as perninhas magras das crianças que moravam à beira das estradas.
Enchia a mala do carro com os pacotes: com um, com dois, com três e com quatro. Afinal de contas, família nordestina é grande e o frio era daqueles que parece ponta de faca encostando nos ossos. Claro que ela usava edredons, quanto mais grossos, melhores. Mas ela merecia; acreditava que cada um passa o frio que merece. Caso Alvalinda esteja ainda na superfície global, talvez deva continuar pensando assim.
Tarde fria, daquelas boas de namorar, mas ela saiu; os cobertores já ficavam no carro, fosse aonde fosse. Para aqui, para mais adiante, tinha os “fregueses” certos. Nessa tarde porém , estava descontente, zangada com Deus e com ela própria. Mandou o namorado pra casa, afinal era sábado dia de ficar com os amigos. E ele foi, mal contendo o ciúme. Para quem ele pensava, que ela iria oferecer os cobertores, só a mente insegura e doentia dele, sabia.
Ia ela beirando uma estrada de chão, porém o asfalto ficava mais alto. Viu uma coisa parecida com uma casa, de compensado, papelão, zinco, panos e outros materiais. Seu frio aumentou: Como alguém pode morar assim, com um frio desse? Sentado em um banquinho que nem era um banco, mas um pedaço de tronco, um senhor sem camisa, magro feito vara verde, com uma faca na mão, picava algo.
Alvalinda seguiu em frente e, no primeiro contorno, voltou, desceu com cuidado a rampa que separava o asfalto da casinha, viu que o barro mole podia fazer o carro derrapar, pensou. Felizmente, parou, lado do carro com a frente da “casa”. Um molequinho que só tinha olhos e barriga (a barriga pela farinha, os olhos pareciam fora das órbitas, devido à magreza da carinha). Só vestia uma sunga, pés no chão. Logo vieram mais quatro para a “porta” da casa.
-Arguma coisa moça? Perguntou o homem
-Essas crianças são suas?
- são sim, senhora prumodediquê?
- prumode eu queria saber se eles não estão com frio
- tão não, moça, já tão acostumado, nóis mora aqui faz tempo...
- e como agüentam o frio?
- nóis nem sente mais...
- e quando chove muito, esse papelão e panos molham, como fica?
- fica cumo Deus qué, nois troce o pano, vai nas loja catá caixa e faiz tudo dinovo; sorriu largo com um “taco” de charuto na boca e os dentes aqui sim, ali não.
Alvalinda que já estava macanbúzia, sazonalmente cor de cinza e com a alma acorrentada na tristeza, disse:
- tenho aí no carro cinco cobertores. No inverno saio entregando a quem precisa. O senhor aceita?
- Mai craro qui nois percisa moça.
Ela sorriu um pouco, aquecendo o coração e brincou: mas o senhor não disse que você e sua família guentam o frio?
- ahahahah ele gargalhou e completou: nóis guenta, mai nun somo de ferro, né? Cadê os cobertô?
- na mala do carro, pode pegar.
E foi uma correria só; o menor escorregou na lama, e ficou pretinho-marrom
-E agora? Disse ela? Está todo sujo!
-Eu limpo cumcobertô dona.
Não deu para agüentar... A tarde estava ganha. Um sol de quatro horas, safado e fraquinho chegava ao céu para apreciar a festa.
- Hoje nóis drome bem, né meu nêgo? Disse a mãe das crianças e o pai escabriado, mostrou os dentes aqui sim e ali não, de novo.
- Estou indo, até logo!
-Inté, responderam. Deus lhe pague!
- Já pagou, respondeu Alvalinda, com lágrimas de alegria rolando pela face. Voltou para casa e teve a melhor noite de sua vida.
Imagem: crianca.ne.paraiba