Esperando por Amélia
Dezenas de pessoas, a maior parte vestindo preto, estão reunidas naquela ampla sala. Paredes de cor clara, um leve tom de marrom, refletem a luz das dez da manhã que chega com força através das vidraças e portas, formadas quase que totalmente de placas de vidro incolor, transparentes e limpas tanto quanto água potável.
Uma mulher de quarenta e dois anos está à frente do grupo. Olhos marejando, apesar de ter passado a noite quase toda aos prantos. O irmão mais velho aproxima-se e a abraça com tristeza. Beijando os cabelos da irmã, fala com calma na voz. “Mamãe vai ficar bem, Marisa. Vai reencontrar pessoas que ama”. Marcelo observa o rosto da mãe sob o vidro do caixão. “Ê dona 'Melinha'... já tenho tanta saudade da senhora...”
Aos setenta anos, ainda cheia de vida, Améliafrequentava os bailes do Centro de Convivência de Idosos e viajava pelo menos três vezes ao ano. Participava até mesmo de cruzeiros. Nem as crises de labirintite que atacavam uma vez ou outra eram capazes de trazer-lhe desânimo. Em seus últimos dias, esbanjava saúde, mas perdeu a vida dias depois de ser atropelada. Sofreu ferimentos graves e resistiu por três dias no hospital. “Descansou”, disse o filho que a acompanhava, segundos depois do falecimento.
O filho de Marisa, de oito anos, aproxima-se. O tio toca o ombro do garoto, que está menos triste que eles por ter tido pouco contato com a avó. A mãe e o tio choram exatamente pelo mesmo motivo: nos últimos anos tiveram cada vez menos contato com dona Amélia.
– Mãe, é verdade que a vó Melinha vai encontrar o vovô lá no céu?
– É sim, meu amor... - diz Marisa, enxugando as lágrimas com um lenço.
***
Entre o azul do céu e a sequência de montanhas existe uma extensa linha feita de um amarelo vibrante, desenhada com bravura pelo Sol. Tão clara quanto ela, mas menos brilhante é a neblina, que adorna, acolhe e entremeia-se com o marrom-escuro dos topos das rochas que, de onde se observa, tornaram-se chão. Por vezes não é possível dizer onde termina a neblina e começam as nuvens.
Do topo da montanha, um homem admira a imensidão e alterna os olhos entre as demais montanhas, distantes, e o chão próximo, ora descoberto, ora envolto em tapetes de neblina das mais variadas formas. Ele traja camisa branca , calça jeans e sapatos pretos de bico fino, brilhantes, apesar da neblina. Um casaco marrom escuro com listras horizontais pouco mais claras e discretas - apesar de serem listras - completa o figurino. De cabelos grisalhos bem penteados, move os lábios como se estivesse falando, mas quase não há som: fala sussurrando. Respira, repete os movimentos com a boca, impaciente. Interrompe, cala-se, fecha os olhos, aperta-os, como os de quem raciocina sob pressão e volta a mover os lábios. Desta vez o faz sorrindo, com a certeza estampada no rosto. Tira de dentro do bolso do paletó uma foto de Amélia.
Surpreendido por uma voz masculina, vira-se e vê um homem cerca de vinte anos mais velho, mais alto que ele e bem mais magro. Usa óculos cujo modelo saiu de linha em 1972. A combinação do terno preto com gravata, chapéu cinza e um lírio no bolso superior esquerdo do paletó o faz assemelhar-se a um agente funerário.
– Olá.
– Quem é você? - pergunta o mais velho.
– Paulo. E o senhor?
– O que faz aqui?
– Primeiro responda a minha pergunta: qual o nome do senhor?
– Décio. O que está fazendo aqui?
– Espero por uma pessoa.
– Que pessoa?
– Amélia – responde o mais novo, incomodado com as numerosas perguntas do desconhecido.
– Deve haver algum engano.
– Por quê?
– Porque EU vim buscar Amélia - explica Décio com voz imperativa. Em silêncio, Paulo o observa. Em seguida, dá continuidade à conversa.
– O que o senhor foi dela?
– Marido.
– Meu Deus... então com certeza existe algum engano!
– Existe mesmo. Eu não te conheço – Décio observa-o de cima até embaixo.
– Fui namorado de Amélia.
– O quê? Como assim? Ela não teve namorado! Que brincadeira é essa, cavalheiro?
– Não é brincadeira. Namoramos por alguns meses, quando ela já era viúva.
– Eu não acredito nisso! - Décio estava transtornado.
– É a verdade, meu amigo. Eu não estaria neste lugar por outro motivo.
– Não sou seu amigo! E você está em lugar errado! Sou eu quem vai acompanhá-la.
– Pode ser.
– “Pode ser”, não. VAI ser – Décio eleva o tom de voz – aliás, como é que foi esta história de “namoro”?
– Eu a conheci durante uma aula do curso de Francês. Tinha acabado de me desquitar. Ficamos amigos, interessamo-nos um pelo outro.
– Aula de Francês? - diz Décio, inconformado – ela nunca me disse que gostava de Francês.
– Ela pode ter se interessado depois de ter se tornado viúva.
– Eu nunca permitiria que ela voltasse a estudar. Ainda mais nessa idade!
– Seu Décio, esta afirmativa do senhor reforça minha dedução.
– Conversa fiada! E você é bem mais novo! Quantos anos teve? - a voz azeda sempre
– Sessenta.
– Sessenta! Quase dez anos mais novo que ela! Isso é um absurdo! Isto é, se estiver dizendo a verdade. Você me parece ainda mais novo!
– Sempre me disseram isso. Acredito que os hábitos saudáveis ajudaram. Amélia também ajudou, dançávamos bastante.
– Dançavam? – nova surpresa para Décio.
– Sim. Nos bailes.
– Bailes?
– Sim, seu Décio.
– Você está mentindo! É tudo mentira!
– Não, seu Décio. Aqui não é possível mentir. Lembra-se disso?
– Ela nunca me pediu para levá-la a lugares assim! Aliás, eu nunca gostei de bailes e festas.
– Ela gostava bastante. E eu também – Paulo falava com naturalidade e alegria. Décio vira-se e dá alguns passos, olhando para as montanhas.
– Quando ela chegar, terá de me dar explicações.
– O senhor não acha grosseiro?
– Grosseiro? - Décio vira-se para Paulo – o quê?
– Fazer perguntas sobre coisas que ela fez ao invés de recebê-la com um abraço e um sorriso.
– Quem é você para ficar me dizendo o que é certo ou errado? - retruca Décio, aproximando-se de Paulo.
– Não estou fazendo julgamento algum. Este foi apenas um conselho.
– Quer saber de uma coisa? Chega de conversa. Vou é ficar no meu canto, esperando Amélia chegar.
– Como quiser.
– E ela vai comigo. - Depois de alguns segundos pensando, Paulo propõe:
– Façamos assim: vamos esperar até que ela chegue. Aí ela escolhe quem quiser que a acompanhe. O senhor concorda?
– Mas que piada! É lógico que ela vai me escolher!
– Como pode ter tanta certeza?
– Porque fui o marido dela! Me casei com ela! Sou o pai dos filhos dela, o homem que trabalhou para sustentar a casa!
– Nada disso pode ser visto como garantia.
– Ela vai me escolher!
– E se isso não acontecer?
– Ela vai me escolher! Fui o marido dela, eu vou levá-la - Décio agarra Paulo pelo colarinho, olhando-o nos olhos.. Paulo não o evita.
– Ela era feliz ao lado do senhor?
– Claro que era!
– Ela já disse isso para o senhor?
– Que pergunta ridícula!
– Responda à pergunta ridícula!
– Claro que ela disse!
– Quando? - Décio se cala.
– Quando, seu Décio? Responda! Lembre-se de que aqui não se pode mentir. E nem adiantaria tentar – Décio respira, tenta falar - Quando ela disse que o senhor a fez feliz, seu Décio? - insiste Paulo.
– Na noite de núpcias.
– Noite de núpcias! Quando foi isso, seu Décio?
– Mil novecentos e cinquenta e três.
– Sessenta anos, seu Décio! Exatamente o tempo que vivi! Noite de núpcias! Data em que o senhor e ela tinham acabado de se casar! Não havia filhos! Não havia problemas! Nem convivência!
– Cala essa boca!
– Não havia nada além de expectativa!
– Falei pra calar a boca! - Décio aperta o pescoço de Paulo. Este tenta livrar-se com as mãos.
– Semanas antes de eu partir, ela disse que nunca foi tão feliz quanto naquele momento! - Décio soca-o no rosto. Paulo cai no chão.
– Parem com isso! - grita a voz de um terceiro elemento. Paulo levanta-se com as mãos sobre a face, com cara de dor. Ele observa o autor da frase cinco metros distante, que tem o tronco revestido por um colete prateado. Destaca-se o vermelho do tecido da camisa de mangas curtas usada por baixo da proteção. A cabeça está coberta por um elmo feito do mesmo metal que o colete. No topo, uma pelagem disposta como escova, mas macia como cabelos e grossa como fios de linha de crochê. Nas laterais, partes móveis que lembram orelhas de cachorro. O homem usa uma espécie de saia e sandálias de couro, que cobrem cerca de dez centímetros do início da perna, logo após o tornozelo. Está armado com uma espada pouco maior que um facão, com cabo simples de madeira.
– Quem é ele? - pergunta Paulo.
– É a pessoa que vai te levar para o lugar que você merece. Lamento por você – Paulo olha para Décio, preocupado. Depois de algum momento, indaga:
– Por que eu? Como é que o senhor pode ter tanta certeza? - observando o guarda aproximar-se, Décio responde:
– O libertino é você - Paulo debocha.
– Que exagero! O senhor fala como se sua vida fosse tão clara quanto uma bacia preenchida com cândida virgem... - eis que o terceiro indivíduo anuncia:
– Senhor Décio Rocha, venha comigo. - ele se assusta e protesta.
– Perdão, jovem! Eu fui excelente pessoa! Exemplo de retidão e caráter! Deve haver algum engano!
– Do lugar de onde venho, não se comete enganos – respondeu o guarda, com rispidez.
– Mas eu não posso conceber tal coisa! Não posso concordar... - Décio é interrompido pelo soldado, que eleva a voz:
– Senhor Décio Rocha! Venha comigo! Se não vier imediatamente, terei de levá-lo à força!
Décio olha para Paulo, baixa a cabeça, retira o chapéu e segue aquele que veio buscá-lo. Paulo observa-os distanciando-se, apagando-se entre as cortinas de neblina. Pouco menos distante de onde os dois sumiram alguém vinha em sentido contrário. Somente quando está há cerca de cinco metros é que Paulo enxerga a pessoa suficientemente para perceber que não é Amélia. O rosto estava coberto por um capuz. A larga vestimenta, peça única, cobre o tronco e termina numa espécie de saia. É toda de uma só cor, exceto o longo cordão cor de palha amarrado à cintura, com o nó para o lado direito. A cor, a princípio, parecia ser preta, mas quando o estranho se aproximou mais, Paulo percebeu tratar-se de marrom bem escuro. Havia um crucifixo de quase um palmo, feito de madeira, pendurado ao pescoço. Somente a curta distância era possível ver o rosto do forasteiro, que tinha olhar fixo em Paulo. Interrompeu os passos, pôs o capuz para trás, descobrindo a cabeça e comunicou, em voz agradável:
– Olá, meu amigo. Trago boa notícia: vim para levar você! - Em tom de rejeição, Paulo questiona.
– Veio mesmo para me acompanhar? Não tenho certeza de que gostaria de ir com o senhor. - O estranho não se surpreende com o comentário.
– Sim, filho. É você mesmo! Vim para buscá-lo!
– Não posso voltar? - Paulo ainda resiste. O homem toca seu ombro, querendo acalmá-lo.
– Não há por que se afligir. O lugar que te espera é maravilhoso!
– É que estou esperando por uma pessoa.
– Você terá oportunidade de encontrá-la depois. Confie em mim. Vamos - o monge posiciona-se ao lado de Paulo, dobra o braço direito, oferecendo-o. Paulo cruza o braço com o do acompanhante, de forma semelhante que fazia com a avó. Andando devagar, olha para várias direções, procurando Amélia.
A idosa, de cabelos louros com alguns punhados de grisalhos e olhos azuis, traja vestido branco que começava logo acima do busto. No meio das coxas, o tecido grosso terminava para dar início a uma continuação feita de véu, que ia até o chão. Ela estava descalça. Sentava-se sobre uma maca branca, afastada da parede de mesma cor, onde se podia ver guardado um imenso par de asas, pendurado em um gancho.
Junto com ela, sentado à maca, estava um homem de cerca de quarenta anos. Cabelos pretos com alguns poucos enbranquecidos. Usa camisa azul clara, com mangas curtas e calça da mesma cor. Os olhos pretos estão fixos no par de asas. Ela põe a mão em seu queixo, virando o rosto, fazendo com que ele olhe para ela. Toma das mãos dele um crucifixo dourado para, em seguida, usar o objeto para acariciar-lhe os lábios.