O DISCURSO DE NATAL

Durante toda a sua infância, o dia 24 de dezembro - véspera de Natal - era comemorado na casa de um amigo de seu pai. Na verdade, aos olhos daquela menina, aquele era um grande evento – não só por conta do número de pessoas presentes, mas pela festa propriamente dita. Era tudo de muito bom gosto. Na grande sala de jantar, a mesa estava sempre bem decorada, com toalhas e guardanapos bordados à mão. Além disso, os talheres e a louça eram irrepreensíveis, e os arranjos de flores e frutos, maravilhosos, sem falar na comida, é claro. Tinha peru, presunto, porco, bacalhau, saladas, ... e as famosas sobremesas. A apresentação dos pratos era tão primorosa que os convidados começavam a comer com os olhos.

No entanto, havia um detalhe que poderia passar despercebido a todos, mas para aquela menina, tinha um quê de especial. Ao lado dos copos, havia um bombom! A primeira vez que vira tal coisa, ficara boquiaberta. Tinha um bombom para cada pessoa e olha que a mesa era bem comprida – do tipo usado nas fazendas. Era muito bombom de uma vez só!

Nessa festa havia alguns rituais. Por exemplo, pouco antes da meia noite, as pessoas se dirigiam a tal sala. Então, velas decoradas eram acesas enquanto as luzes eram apagadas. Depois, todos se davam as mãos e cantavam Noite Feliz. Era um momento único, que, às vezes, a fazia chorar. Ela não sabia explicar o porquê, mas era um misto de beleza, alegria e tristeza – tudo ao mesmo tempo.

Após a canção, o dono da casa fazia um pequeno discurso, e passava a palavra para o pai dela. Todos aguardavam essa hora, visto que seu pai sempre falara muito bem - era uma espécie de porta voz do grupo. Só depois, então, é que a ceia era servida, seguida de farta distribuição de presentes. Havia também brincadeiras para adultos e crianças. Entretanto, alguns pequerruchos não aguentavam ficar acordados até tão tarde, e acabavam dormindo num dos quartos. Todos os anos era a mesma coisa, porém era uma ocasião tão bonita que não era enfadonho como se poderia supor.

Os anos foram passando, as crianças crescendo, os cabelos dos homens rareando enquanto algumas mulheres tomavam ares de matrona. Contudo, a mágica persistia. Até que um dia seu pai pegou-a de surpresa.

- Você sabe que dia é sexta-feira? – ele perguntou.

- Sim, vinte e quatro de dezembro. – ela respondeu.

- Este ano vai ter uma coisa diferente na casa do Ernane.

- É mesmo? – ela indagou incrédula.

- É. Eu não vou fazer o meu discurso.

- Não? Como assim? Eu cresci ouvindo você falar durante todos esses anos. É o momento mais esperado da noite, talvez só perca para a chegada do Papai Noel.

- Você tem razão. Justamente por isso que resolvi que está na hora de alguém tomar o meu lugar. Sendo assim, VOCÊ vai falar em nome da nossa família.

Ela não podia acreditar no que acabara de ouvir. Seu pai devia estar brincando ou tinha ficado louco. Como uma pessoa extremamente tímida e reservada iria discursar na frente de mais de cinquenta pessoas? Como poderia substituir seu pai, o rei da oratória?

Diante de tal revelação, ela mal conseguia respirar. Seu coração batia acelerado, e parecia que ia sair pela boca. Sua testa começou a latejar e suas mãos ficaram molhadas. Como poderia enfrentar tal desafio se só de pensar, já estava se sentindo mal? Não. Definitivamente devia ser alguma peça que seu pai estava querendo lhe pregar. Enquanto ela ficava naquela agonia, procurando uma explicação, seu pai se mantinha imóvel, estudando-a. De repente, ela inventou uma desculpa e conseguiu sair como uma flecha.

Nos dias que se seguiram àquele diálogo, seu pai, volta e meia, fazia menção ao discurso. Ela já havia pensado no que iria dizer? Ela iria falar de improviso ou escreveria, pelo menos, alguma coisa? A pressão era tão grande sobre os seus ombros que, pela primeira vez em sua vida, encarava a festa como um castigo. Dormir à noite era quase impossível. Sonhava com aquele maldito discurso. Tinha palpitações, estava inapetente, e com os nervos em frangalhos. Se pudesse, sumiria no mundo, e só voltaria após o ano novo.

Ela acabou rabiscando um texto “mambembe” numa folha de papel e a meteu no bolso. Era só por desencargo de consciência, porém nem assim ela se sentia mais calma. Afinal, como ela poderia garantir que suas mãos não tremeriam, e que ela conseguiria entender o que estava escrito? E quem disse que sua voz seria audível? Ela poderia ficar um tanto gaga ou sem voz, de uma hora para outra.

Embora a mãe fosse solidária com a angústia da filha, ela não ousava interpelar o marido. Sendo assim, no final da tarde do dia 24, lá se foram eles. Durante o trajeto, a jovem analisava a situação, e quando chegaram, foram cumprimentar as pessoas, mas ela estava tão nervosa que teve muita dificuldade para travar um diálogo com alguém. Ficou quieta o tempo todo, rezando para que seu pai mudasse de ideia. Na hora da canção natalina, ela simplesmente ficou de boca fechada porque as palavras não saíam. Seus olhos procuravam ao redor por um rosto que lhe desse coragem para dar conta de sua missão, porém sua busca não obteve nenhum resultado positivo. Mais tarde, quando o anfitrião acabou de falar, virou-se para o pai dela. Este, por sua vez, olhou para ela. A cena, na realidade, deve ter levado alguns segundos, mas não para ela. Ela encarava o pai, pedindo “socorro”. Se pudessem ouvir seus pensamentos, seria algo assim: "Por favor, tenha misericórdia. Não faça isso comigo."

O silêncio da sala era profundo, e ela parada ali, muda, até que ele virou-se para frente, e começou a falar. Ela custou a acreditar que estava salva. Sentia-se tão perturbada que não conseguia acompanhar as palavras do pai.

Nunca soube exatamente o que dera nele para ter tomado aquela decisão. Será que tudo não passara de uma brincadeira de péssimo gosto? Ou será que, talvez, tocado pelo espírito de Natal, seu coração tenha se apiedado dela? Ela nunca tocou no assunto pois tinha medo de que ele fizesse outra tentativa para colocá-la para falar em público. Entretanto, ele também ignorava uma coisa: seu “perdão” fora um dos melhores presentes que sua filha recebera.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 11/06/2013
Reeditado em 30/08/2013
Código do texto: T4336758
Classificação de conteúdo: seguro