Dança das noites brancas

Enfim cheguei no lugar que sempre tive muita vontade de conhecer, São Petersburg, na Rússia. Fazer a etapa do Triathlón de St Peter - como é carinhosamente conhecida a cidade - era pra mim algo mágico e agradeci aos céus essa oportunidade única em minha vida. Desci no aeroporto de Pulkovo, confesso que me deu um certo frio na barriga. Os caras da alfandega, nenhum pouco amistosos, passavam um certo ar de tensão e um misto de preocupação, pra não dizer que eram extremamente burocratas.

“Ufa! Que ‘nóia’ “. Pensei, comigo. “Se os caras fizeram todas essas perguntas por causa das minhas tralhas de triathlón, o que não fariam se eu estivesse entrando lá por outro motivo qualquer”. Não sei por que me veio à mente a imagem do filme “O sol da meia noite”... Mas de toda sorte estava acompanhado do François, amigo fotógrafo francês, que tinha já algumas milhas carimbadas no passaporte, sendo, por assim dizer, bem desembaraçado em relação a esses tipos de assuntos.

Caramba, eram 11 horas da noite e a noite estava clara. O sol preguiçosamente não conseguia se pôr, por capricho da natureza ou, simplesmente, por pura poesia para dá à lua um pouco de sua sensação emprestada de majestade, afinal, quem testemunha essa luminosidade, pensa logo que ela advém do luar, sendo assim, o sol, matreiro, ficava meio que escondido na linha do horizonte. Na verdade, esse fenômeno é mais conhecido pelo nome de “White Nights “, noites brancas. Fenômeno esse tão bem retratado e eternizado por Noites Brancas, na primorosa obra literária do escritor Fiódor Dostoiévski.

O essa atmosfera onírica que estava testemunhando, durante todo percurso de táxi do aeroporto ao hostel Intouch, no centro de St Peter, onde iriámos ficar, me deixou completamente em silencio. Não me lembro de ter trocado uma palavra sequer com François. Pensava: “cara, será verdade mesmo? Estou aqui... Na antiga Petrogrado, cidade de vanguarda da literatura, música, filosofia e pensamento russo...” Por outro lado, não pude deixar reparar que além do lirismo onírico das cores do anoitecer e dos perfumes careados pela noite peculiar de St Peter, também existia uma pesada realidade no ar difícil de ser encarada.

As primeiras 24 horas em St Peter podem ser um choque para o viajante. As boas vindas dos oficiais da Imigração, como já narrado antes, lembram a KGB de ressaca dos” bons” tempos comunistas - não espere que eles falem, ou mesmo olhem pra você e tampouco receba deles um “welcome”. Chegar de avião a St Peter pode ser peculiar com a paisagem da vista área de velhos blocos residenciais de concreto e chaminés de fábricas. Ademias, os subúrbios da city trazem grande contraste com o centro histórico de St. Peter, uma vez que a Nevski Prospekt – uma das mais famosas avenidas do centro - é a parte mais 'Europeizada' da “Big Town” e será mais familiar para viajantes ocidentais chegando a Sankt Petersburg. Se você vem de um país ocidental, vai achar todo este contraste chocante ou mesmo “engraçado”. Ou seja, o que melhor explica essa sensação de espanto é uma famosa frase de Tolstói: “Os ricos fazem tudo pelos pobres, menos descer de suas costas.”

Afinal, cheguei ao Hostel Intouch, onde iria servir de base de apoio ao pessoal do triathlón de St Petersburg. Era verão, já passava da meia noite e a luminosidade era espantosa. Quando enfim cheguei no quarto, com oito camas para variar e tendo que disputar uma vaga na fila pro banho, algo assim que não me deixou nem um pouco radiante de felicidade. Todavia ao me deitar me dei conta do verão de St Peter. Não pelo calor, ao contrário, fazia um frio do cão, sendo certo, que ainda que estivesse numa cidade memorável, tudo que eu queria naquele momento era dormir profundamente. Só que não imaginava o quanto isso poderia ser um exercício complexo de paciência, dormir.

Assim que a luz foi apagada, comecei a querer flertar com “Morpheus”, mas, para minha completa surpresa, fui recepcionado por uma tremenda sinfonia de centenas de indivíduos a me dizerem Welcome St Peter, cujo idioma, bastante conhecido meu, se traduzia pelo característico infernal “bizzinnnnn, bizzinnn, bizzinnn”, zunindo no entorno de meu pavilhão auricular (orelhas). Acontece que a cidade é empesteada por milhões de mosquitos no verão, uma vez que o entorno pantanoso da metrópole cria condições excelentes para a reprodução deles. Em acomodações baratas, como a minha e sem medidas de prevenção contra mosquitos, isto pode ser um problema noturno dos grandes, colocando em risco seu tão merecido descanso.

No dia seguinte, apesar da sinfonia “maravilhosa”, acordei e me dei conta das pessoas que estavam no quarto comigo. Eram um espanhol, Henrique, triatleta, uma australiana, Emma Snowill, também triatleta, François e uma bailarina russa, Ekaterina Demina. A princípio quando olhei para cara do meu amigo, não acreditei... François, branco como vela, tinha pelo menos uma dúzia de moranguinhos estampado no rosto, frutos dos talentosos e simpáticos amiguinhos artesões noturnos. Estava realmente muito engraçado e com uma cara mal dormida de dar dó. Acho que a irritação era geral, todavia somos seres extremamente adaptáveis.

Fomos junto ao salão onde estava sendo servido o café. Logo após, sai com o grupo de triatleta que estava no Intouch Hostel. Fomos junto pegar o kit do triatlo e assistir ao simpósio no Hotel Courtyard por volta das 9:00hs.

O hotel era localizado nas margens do Canal Griboedov, onde ficou hospeda a galera da elite A e o pessoal da organização do comitê internacional de triathlón. Este hotel tinha uma academia moderna e serviço de translado de ônibus gratuito para o centro de São Petersburgo, aliás, outro nível bem diferente de onde estávamos, provavelmente, dispunha de um sistema apropriado para contenção dos malditos mosquitos. A Praça Turgenev e os bondes ficavam aproximadamente a 5 minutos de caminhada, ou seja, não era tão próximo ao centro como o nosso hostel, porém nem precisava com toda aquela infraestrutura.

Ficamos sabendo tudo a respeito do triathlón que seria realizado no próximo domingo em Peterhoft, no jardim do famoso palácio Peterhoft, que era uma cidade que ficava, aproximadamente, uns 42 km de St. Peter. A organização ficou de preparar uma comitiva de três ônibus, que partiria por volta das 13:00 hs de lá do hotel, com finalidade de apresentar o percurso da prova aos competidores. Também tinha o objetivo de estabelecer uma base onde se poderia conta com locais de acomodações para o aparato do material dos triatletas.

Era uma correria só, sai de lá por voltas de 10:30 hs, precisava almoçar, pegar minhas tralhas de competição no hostel e voltar para o ponto de encontro de onde sairia a comitiva para Peterhoft. Nessa correria não tive tempo de contemplar a cidade de St Peter. Era verão, as pessoas nas ruas estavam usando roupas leves. As mulheres, muito lindas por sinal, usavam camisas que deixavam os braços e costas nuas, todavia, em especial, próximo ao rio Neva que corta todo o centro de St Peter, fazia um frio do capeta. Os relógios digitais marcavam cerca de 7 graus positivo, entretanto, devido ao vento, a sensação térmica para mim era de pelo menos uns 2 graus positivo.

Aquilo me incomodava, nunca gostei de frio. Algo, porém, não pude deixar de notar. Era sexta-feira, em pleno um dia normal de semana, as pessoas andavam pela cidade meio que errantes, procurando algo que não sei o quê... Havia um brutal índice de desemprego. Por outro lado, o idioma russo é uma grande barreira de afastamento entre os peterburguenses e as demais pessoas de outras nacionalidades. Raras são as pessoas de lá que falam outros idiomas, e o alfabeto cirílico... Gente, para tudo!!! O que é isso. Aquelas letras mexem com o teu imaginário... Afinal, o que quer dizer isso??? Já pensou: “um pare, cuidado buraco à frente”

Mais tarde, fiquei sabendo que apesar da Peristroika, juntamente, com a Glasnost ter acontecido em 1985, estávamos em 2003, ou seja, mais de dezoito anos depois da reconstrução política promovida por Gorbachev, ainda assim o povo russo estava por demais ressentido, uma vez que esse fenômeno político pôs fim abruptamente ao regime estatal promovido por Stalin, que persistiu por mais de sete década e meia. Ou seja, até então a economia russa seguia um rígido sistema de normas que regulavam as atividades socioeconômicas da antiga URSS, desta forma, existiam os escritórios burocratas que tentavam planejar as atividades econômicas de cada região das repúblicas, determinando o que fazer, como fazer, as quantidades a serem produzidas e, enfim, por assim dizer, controlavam tudo a respeito do cotidiano dos centros urbanos e da vida rural. A Perestroika não só falhou no propósito de trazer benefícios econômicos imediatos para a maioria das pessoas, mas o desmantelar da economia planejada criou o caos econômico, o que constituiu um fator importante para o colapso da União Soviética. Assim criou-se, a partir dos escritórios burocratas, máfia para tudo... Máfia dos armamentos, máfia da distribuição de alimentos, da prostituição e tráfico de mulheres, de medicamento, entorpecentes e por aí vai...

A coisa estava tão difícil, por conta dessa mudança abrupta, em termos de levar a vida comum, uma vez que não houve tempo suficiente para adaptações e de se estabelecer com regularidade uma economia de mercado, nos moldes das sociedades democratas, capaz de suprimir as necessidades mais básica de subsistência do povo russo. E, por conta disso, ouvi dizer que jovens andavam perambulando pelos antigos campos de batalhas e cemitérios, já que a Rússia tem histórico de guerras antológicas, à cata de túmulos a fim de descavá-los para ver se encontravam, nos corpos ali sepultados, dentes de ouros ou qualquer outro objeto que tivesse algum valor econômico que pudesse ser comercializado. Descobri, então, como dizem por aqui, no Brasil, quando estamos diante de alguma coisa complicada, em termos econômicos, que a coisa tá russa... Bom, nosso caso tá mesmo brasileiro, lá é que tá russo demais. De maneira que as coisas, as mais simples possíveis do dia-a-dia, eram sempre feita na forma dum improviso só. Um varal de estender roupas, um fio de bobina dos carros que eram velhos da marca Lada e viviam enguiçando, antenas de tvs, telhados das casas e assim por diante. Dava pra sentir esse clima de tensão no ar, especialmente, nos bairros mais afastados e em algumas regiões do centro da city nas proximidades dos caís. Era uma cidade bastante conflitiva, e a violência dos subúrbios podia ser sentida em todas as partes de St. Petersburg. Tenho que a vodka e outras drogas eram os passaportes ideais para quem queria fugir daquela dura realidade. Aliás, a vodka era mesmo como água, estando presente em todos os cantos.

Voltando, então, para triathlón, e ao pouco tempo que tínhamos para almoçar, reunir nossas tralhas de competição e voltar ao encontro da comitiva. Acabou trazendo um pouco de “stress”; lembro-me que eu, Emma e Henrique almoçamos num restaurante próximo ao nosso hostel, e, em meio àquela correria peculiar, da hora do rush nos restaurantes, foi um verdadeiro desafio entender o cardápio em cirílico, uma vez que a desgraça também não trazia as fotos dos pratos. Chamar o garçom e desenrolar com ele foi outra epopeia. Parecíamos surdos e mudos analfabetos na linguagem de libra tentando nos comunicar. Foi punk, porém conseguimos apontar pra um prato de uma pessoa que acabara de ser servida que estava sentada na mesa ao lado. No final, acho que comemos algum tipo de pescado típico, acompanhado com uma espécie de grão que lembrava grão-de-bico, arroz e uma salada mista. Uma coisa é certa, nosso dinheiro se multiplicava. Fizemos uma farra no restaurante e a conta não passou dos U$ 20,00. Na época, um dólar valia trinta e cinco rublos.

Encontrei François no quarto do hostel. Explique-lhe o que estava acontecendo e o motivo do nosso stress em função do tempo reduzido para cumprir a agenda do triathlón. Ainda tive tempo para lhe contar a epopeia vivida no restaurante. Pior que o safado, com uma cara de sorriso no rosto, disse-me, com uma tranquilidade budista, que não teve problema nenhum e que almoçou num restaurante super agradável. O canalha almoçou com Katya, a bailarina russa que estava no nosso quarto. Saindo às pressas disse-lhe, em tom de brincadeira: você me paga, patife!

Enfim, nos acomodamos no ônibus. Henrique tratou logo de se acomodar junto à Emma. Então, percorrendo o corredor do ônibus, pra minha grata surpresa, encontrei a Carla Ohata, que estava voltando ao tour de competições internacionais após ter sido afastada por problema de doping. Abri um sorriso de orelha a orelha:

- Carla, permita-me que eu me apresente. Meu nome é Fábio, estou aqui pra participar da IV etapa da ITU de St Petersburgo... Caramba, vc não sabe da minha satisfação em encontrar aqui um rosto familiar. Conquanto estivesse acompanhada, permitiu que me sentasse ao seu lado.

- Perdão, mas não te conheço das competições. - disse Carla.

- Sim é possível, nunca estive no pelotão da elite A profissional. Sou um atleta amador, que corro com patrocínio do TJ/RJ. Por isso, nunca nos encontramos... Engraçado que viemos nos encontrar aqui nos confins do mundo.

- Desculpe te perguntar... e, por favor, se eu estiver sendo inconivente, não hesite em me interromper. Você conseguiu superar o problema que te manteve afastada do triathlón? Perguntei-lhe meio sem jeito.

- De jeito nenhum. Meu processo foi público e fortemente alardeado pela imprensa especializada. Respondeu, Carla com muita polidez. Continuando...

- Conseguimos provar, naquela ocasião, que o estimulante, dietil propiol, um derivado de anfetamina, que apareceu no meu exame, foi tomado de forma não intencional, através de um suplemento nutricional contaminado. Explicou.

-Todavia, isso me deixou bastante abalada. Pensei até em deixar o triathlón... Mas, eu amo demais isso aqui. Foi essa força que me permitir suportar todo aquele processo exaustivo de tribunais, provas e contraprovas... Isso acabou me custando todo o ano passado. Mas isso, graças a Deus, são águas passadas. Só que depois que a tempestade passou, voltei a treinar forte... e o Pinheiro, meu clube, que me apoia em tudo, conseguiu fazer com que eu voltasse, em nível competitivo, à I.T.U. Já tô até ranqueada. De modo que venho a St Petersburg por convite da própria I.T.U. para participar da prova na Elite A, na qual vale importante pontuação para o Ranking internacional de triathlón.

- E você, o que faz aqui nesse fim de mundo? - perguntou, Carla.

- Bem... Estou aqui mais a passeio mais do que qualquer outra coisa. O patrocínio que trago não me permite grandes participações a ponto de correr todo circuito internacional da ITU. Do TJ/RJ, por exemplo, tenho apenas uma licença especial para correr algumas etapas. Já o Pé-de-Atleta me permite um certo oxigênio financeiro, porém o grosso das despesas são por minha conta. De toda sorte, através da acessória deles consigo estadia em hostels ou em centros acadêmicos universitários. Assim, consigo fazer as coisas que mais gosto na vida: viajar, fazer triathlón e encontrar pessoas. Acho, na verdade, o fato de você ter a oportunidade única de conhecer o coração das pessoas, em lugares tão distante como esse, é umas das coisas mais excepcionais que alguém pode viver...

- Carla, vc não tem ideia do número de pessoas que tive oportunidade conhecer. Aliás, pessoas que jamais existiriam em minha vida se não fosse o triathlón. Sem falar que esse clima aqui vivido por nós é único. Essa atmosfera que antecede as provas é tudo de bom. E quantas coisas que a gente aprende nas clinicas e nos simpósios de triathlón. Eu acho o mundo do triathlón muito rico, é uma verdadeira academia acadêmica de vanguarda em termos de nutrição, fisiologismo, medicina do esporte, biomecânica do movimento e por aí vai... Nossa, isso é tudo de bom!

Quando mal percebi, estávamos já chegando nos jardins do Palácio de Peterhoft. Acho que provavelmente nunca tinha visto algo tão suntuoso. Caramba, a beleza do local é magnifica. “Nossa que bom... não ia ter que nadar no rio Neva, nunca gostei de nadar em rios.” Estávamos bem em frente do golfo da Finlândia, o famoso mar báltico. Falei qualquer coisa com a Carla Ohata, pedindo licença para me afastar e fui ao encontro de Emma e Henrique. Fomos direto armar as bikes, afinal, estávamos ansiosos para desenferrujar as pernas e explorar aquele lugar estupendo.

A imensidão do mar báltico é coisa de tirar o fôlego. Não tem como não contemplá-lo e não achar que Deus existe. Aliás, àquela cidade tão pouco afastada de St. Peter, tem um ritmo completamente diferente. Tranquila, sem aquele clima pesado e sem o trânsito caótico de St. Peter, ouve-se os cantos de gaivotas voando alongo da praia. Podia também divisar ao longe os gritos de crianças brincando. Fomos pedalando margeando o mar báltico na direção de Lomonosov, um cantinho com ar de vilarejo. Após aproximadamente uns 25 min de pedal, fizemos a volta e retornamos até jardim do palácio Peterhoft.

A bem da verdade, um pensamento me ocorreu quando retornava ao Palácio... Ali diante da imensidão azul do mar báltico, descobri por que pedalava... Era uma necessidade, tinha que estar pelando o todo tempo dentro da minha vida, sob pena de perder o equilíbrio e cair. De fato nunca corri atrás de nada, prêmios, reconhecimento ou fama, a não ser de mim mesmo. Correr dentro de si para encontrar o super-homem sempre foi meu objetivo, não aquele dos quadrinhos animados, mas aquele que está dimensão transcendental que te faz vibrar como essência de ser humano, pois é aí onde se encontra o verdadeiro super-homem. Engraçado é que quando se alcança essa dimensão de consciência dentro da sua “corrida”, nos tornamos invencível, pois estamos muito além do cansaço, por que passamos pela dor, sofrimento, aflição e medo, afinal, fomos capazes de superar nossas limitações, ultrapassamos a muralha do impossível em busca de novas plataformas de realizações. E, após cruzar a linha de chegada, conquistamos o direito ao passe livre que nos levará ao paraíso sem pagar pedágio. Essa é a verdadeira razão de ser do triathlón dentro da minha vida. Veja que com essa determinação e fibra, alcançadas nas competições esportivas, podemos fazer transposições analogicamente para qualquer palco dentro do tempo e espaço de nossas representações. Seja no trabalho, na escola, no dia-a-dia e enfim, para qualquer coisa que venhamos a fazer. Essa talha, esculpida pelo esporte, nos torna pessoas melhores e mais evoluída. Assim, projetos esportivos, dentro da vida de qualquer pessoa, podem ser sim o diferencial particular para àquela reviravolta tão necessária ao desenvolvimento individual da pessoa como ser humano.

Estávamos, agora ali, sentados em frente ao canal que vai dar no golfo da Finlândia, mergulhados nas sombreadas alamedas dos Jardins Inferiores do palácio de Peterhoft, onde é possível contemplar as esculturas douradas e em mármore dos chafarizes e cascatas artificiais. Sentir as gotas dos “chafarizes-de-brinquedo” (fontes disfarçadas) durante o sol do entardecer. Diante de tudo isso, nos eram dito as últimas explicações sobre a prova de domingo pela organização do evento. Gente, para tudo... Acho que o pessoal da I.T.U. não poderia escolher um lugar melhor para prova de triathlón.

No final da tarde já estava de volta ao hostel. Imediatamente procurei por François, foi quando, enfim, pude me encontrar com Katya, a bailarina russa. E para minha completa felicidade, Katya, além de linda de morrer, falava espanhol. “Não... não é possível!!” Pensei, eu.

- “Perdoname, pero Yo voy te atacar con muy besos. Usted será mía salvación.” Disse, eu a russa. Ela regalou os olhos azuis em meio ao espanto e sem entender o queria dizer com aquilo, porém logo me fiz claro.

- Minha querida, você tem que sair comigo agora. Isso é uma intimação. Preciso de um intérprete, tenho que comprar um repelente para esses malditos mosquitos, não vou conseguir dormir outra noite aqui sem essa defesa. Tenho a impressão que ele vão me abduzir para outro planeta. Katya deu uma sonora gargalhada.

-Não, não ria... O troço é sério... Esses malditos mosquitos devem adorar sangue brasileiro, pois nem Emma e nem Henrique sentiram tanto os malditos conforme eu.

Saímos, então, eu e Katya, à cata de uma farmácia. Logo estávamos cruzando o grande rio Neva sobre uma ponte. Foi só aí que pude reparar de fato como a cidade era linda. As residências dos familiares do Czar, Pedro o Grande, bem como os palácios de seus correligionários, foram construídos ao longo das margens dos rios da cidade para mostrar a todos os navegantes a riqueza e gostos artísticos dos seus patrões. Água sempre foi protagonista principal na história desta cidade.

Em cada canal central da cidade há embarcadouro com barcos para excursão. Graças à navegação desses barcos se pode admirar bairros e palácios antigos, que os turistas não podem ver durante um tour de ônibus. Os barcos atravessam o centro histórico da cidade sem problema de trânsito, que, aliás, é bastante caótico.

- Fábio, na minha opinião (e bem sei que ela é suspeita) estamos passeando na mais bela cidade do mundo. - disse katya.

Não pude discordar dela. St Peter é realmente muito linda. Porém uma coisa que sempre me incomodou em minhas viagens, era às vezes quando me deparava com o obstáculo do idioma. Porque nunca gostei de fazer esse tipo de turismo, ou seja, visitar um determinado lugar como quem visita um grande aquário marinho, observando a vida ali sobre a perspectiva de outra dimensão. O que sempre gostei de verdade era poder estar em contato com as pessoas. Poder entrar nos seus corações e estabelecer contato de alma. Essa para mim sempre foi a verdadeira forma de fazer turismo.

Logo, entramos em um estabelecimento comercial, e fiz minha preciosa aquisição. Agora tinha certeza que teria uma boa noite de sono. Sendo que já fui logo fazendo uso do experimento, afinal, àquela hora, final da tarde, os malditos pernilongos já estavam à cata de suas vítimas.

Aproveitando, então, os tons de luzes carreados por aquele auspicioso entardecer, que deixa o céu da cidade com uma cor especial, semelhante aos tons das pinceladas de Monet, que podiam ser traduzidas, naquele momento, por sons de uma sinfonia de Debussy, conferindo à cidade um maravilhoso clima romântico. Convidei Katya para sentar num banco de uma praça por onde passávamos. Perguntei um pouco sobre a sua vida.

Katya, pelo que pude perceber, é uma dessas pessoas admiráveis por sua sensibilidade e educação.

- Katya, por que então o balé entrou na tua vida? Perguntei-a.

- A bem da verdade, nunca fiz outra coisa na minha vida senão dançar. Continuando, Katya, disse:

- Nasci numa época bastante conturbada da política internacional soviética, marcada pelo fim da guerra do Vietnã, no auge da tensão da guerra fria, e pela primeira missão conjunta da URSS e USA ao espaço sideral. Todavia, internamente, coisa era muito fechada e a vida muito difícil, em alguns rincões dos extremos da URSS pessoas sucumbiam de fome, doenças e pelo extenuante trabalho a que eram submetidas... A sorte da minha família é que meus pais eram bailarinos. Tiveram a oportunidade de fazer parte do grande corpo do ballet Kirov, cuja sede ainda hoje é aquele teatro ali, apontando-me com o dedo o Grande teatro Mariinsk (estávamos sentados na praça bem em frente ao Kirov)... Não tínhamos nenhuma noção de nada do que acontecia no exterior, apenas eram divulgadas as conquistas da URSS e da Alemanha Oriental nos jogos olímpicos de Montreal em 1976...

- Como forma de exaltar a superioridade em relação ao resto do mundo, a URSS não media esforço para criar os superatletas. Por sorte nossa, o balé era um desses expoentes que a URSS enaltecia. Eu nasci numa pequena aldeia na região central da Rússia, quando mamãe veio pra casa dos avós por conta da licença gestação. O nome da minha aldeia é Berkakit, está situado em Yakutskaya Oblast, ela está próximo a uma grande cidade chamada Neryungri... Continuando.

- Fábio, não tive opção, praticamente, cresci dentro da Escola Vagonova. Logo, logo me tornei aluna desde muito cedo. Aprendia, além de dança, piano, francês, filosofia e geometria. Era um momento intenso de aprendizagem na minha vida. Mal tinha tempo de pensar em minha própria vida, o que era ótimo. Estudávamos o dia interior. A jornada de estudo começava às 7:00 hs da manhã e acabava por volta das 19:00 hs, e, às vezes, as coisas se estendiam até as 22:00hs. Veja como era puxado... Todavia toda essa disciplina fez com que construísse em mim uma sólida consciência corporal, capaz de perceber nuances de sensações e traduzi-las em expressão corporal sob a forma de dança. No Kirov a gente apreende transmutar nossos corpos materiais em energia musical, pois o que o balé exige é que a música tenha um corpo, e nós dedicamos nossas vidas a essa arte de materializar e emprestar nossos corpos à “Música”. ..

- Por conta dessa densa formação que tive. Hoje, me sito apta para discutir qualquer tipo de assunto. Claro que não vou ter a densidade de acadêmicos, em assuntos específicos, mas não tenho nenhum problema em conversar sobre história da humanidade, literatura, música, mímica, ciência, energia atômica... Na verdade, tenho prazer em poder estar numa boa roda de papo sobre esses assuntos.

Sobre antiga URSS, Katya disse-me uma coisa que me impactou muito em termos de nacionalidade. Onde ela coloca, claramente, a diferença sutil entre patriotismo e nacionalidade. Disse, então, Katya:

- Fábio, durante todo período da antiga URSS, em momento nenhum, eu me sentia uma cidadã soviética... Sempre fui russa na essência e nunca vou deixar de ser. Esse país dentro e fora de mim é pura alma, onde a gente aprende extrair do frio extremo o calor necessário para aquecer nossos corações. Eu criei uma pequena pátria, unicamente minha, depositei nela todas as belas reminiscências de tudo o que vi nesse imenso país, toda a poesia dessas colunas seculares em que as gerações passadas falam ao futuro pela voz do silêncio, assim encontrei dentro de mim o encantamento dessas vastas e imensas solidões do mar, na qual a alma se expande, e em contato com infinito dessa dimensão, permite-se tocar a região do sagrado a ponto de nascer em mim a ideia que Deus existe...

- Trago comigo um pouco do raio do sol do Oriente Russo, um reflexo da lua da Sibéria, uma nesga do céu de Santk Petersburg, algumas flores, alguns perfumes e dessa forma consegui construir este país dentro de mim... É por isso que vivo, é o que me faz dançar... Através dele consigo transformar meu trabalho na arte de dançar. Esse pequeno universo Russo em mim é o combustível que mantém o meu espírito vibrando na minha dimensão consciente.

Para falar a verdade, acho que nesse exato momento me apaixonei por Katya. Ela com essas breves palavras se descortinou e mostrou-se inteiramente nua para mim. E consegui ver nesta pequena fresta de janela a impressionante beleza de sua alma.

Também começou a explicar por que alguns dos mais famosos expoentes dançarinos da URSS pedirão asilo político em outros países.

- Nossa formação, e aqui não vai nenhuma exacerbação de modéstia, nos tornou gigante a ponto que mesmo ante a grandeza da URSS, em termos de tamanho, ainda assim não conseguiu ser grande o suficiente para abrigar nossos grandes gênios. Daí o porquê que muitos tiveram que deixar a URSS para continuar evoluindo. Mesmo eu tive que sair. Em 1994, fiz uma excursão com parte da cia do Kirov a Madrid, onde recebi um convite pra lesionar na escola nacional de Dança de Madrid e integrar a companhia Victor Ullato. Fiquei em Madrid desde então, por outro lado, às vezes me divido entre Madrid e St. Peter.

Katya me falou também de alguns de seus ídolos no ballet entre eles, o mais famoso, Rudolf Nureyev. Contou-me, por exemplo, um pouco da história de Nureyev, que teve como seu grande mestre e mentor, o professor Alexander Pushkin. Ela disse que Rudolf chegou ao Kirov já com uma idade bastante avançada, dezessete anos, porém sua determinação logo fez dele um dos alunos de maior expressão dentro da cia. Em pouco tempo, passou a chamar a atenção de professores e de artistas experientes. Um deles, Alexander Pushkin, especialista em formação de homens, também professor de Baryshnikov, posteriormente, o treinou durante dois anos o elevando ao topo entre os alunos. Ao se formar, recebeu convites para integrar as duas maiores companhias do país como solista, o Kirov Ballet e o Bolshoi. Ele acabou escolhendo o primeiro.

No Kirov, dançou grandes papéis e, em 1961, acompanhando o grupo numa turnê na França pediu asilo no país rompendo com a União Soviética.

Na oportunidade, ela falava que Rudolf Nureyev, em determinado momento, havia se apaixonado por um bailarino da Alemanha Oriental que fazia um aperfeiçoamento de suas técnicas de dança clássica, em St Petersburg, no Ballet Kirov. Foi, na época, o mais famoso caso de homossexualismo de toda a URSS. Após o retorno de seu amante para à Alemanha, Nureyev ficou inconsolável. Nada o fazia recuperar o ânimo. Até que surgi essa oportunidade de dançar em Paris. Ninguém, porém, pode afirmar que foi esse o verdadeiro motivo de sua deserção.

Ela conta que, já em Paris, em pleno o Opera Paris, quando acabou o espetáculo, Nureyev, com um drible espetacular, conseguiu fugir do alcance dos agentes da KGB, que o vigiavam quase que em tempo integral, pedindo então asilo político às autoridades francesas.

Bem, assim que conseguiu se estabelecer, fez contato com o grande amor de sua vida, até então, em Berlim Oriental. O amante, porém, hesitou por um tempo, pois sua mãe o questionou quanto a sua escolha de viver a vida como bailarino. Ele tinha uma proposta excelente para trabalhar na construção de uma usina atômica e depois assumir o cargo de engenheiro químico. Veja que esse curto período de tempo de hesitação foi suficiente, como num passe de mágica, para que a Alemanha Oriental erguesse o tão famoso muro de Berlim. Desta forma, os dois amantes ficaram separados para sempre, lembrando que o murro só foi cair em 1989, ou seja, 28 anos depois. Triste, não, essa história?!!!. Os dois amantes ficaram para sempre separados por contingência política.

Assim sendo, concluiu Katya, “tem coisas que acontecem na nossa vida que é pular ou não pular, uma vez que depois não dá mais pra lamentar o leite derramado, ou seja, perde-se chance de viver uma outra possibilidade ser”.

Já era tarde, resolvemos voltar, afinal, tínhamos que jantar e confesso que o meu pessoal, sem a Katya, ia ficar no mato sem cachorro.

Domingo de manhã, em Peterholf, estava na largada da prova. Foi uma prova duríssima, o coração o tempo todo no limite máximo. Pela primeira vez assumi a liderança de uma prova do circuito internacional. Nem que morresse ali, iria largar o osso. Água fria do golfo Báltico me incomodou de sobremaneira, nunca fui um bom nadador. Todavia nunca sai tão bem colocado da água. E confesso que quando peguei a bike, senti uma energia fluir pelos meus músculos que nunca houvera antes, em prova nenhuma, sentido, era algo fora do comum. Pedalei tão forte que parecia que trazia comigo uma faca mordendo entre os dentes. Quando larguei a bike estava em quarto, porém a minha melhor pena do triathlón sempre foi a corrida, faria de tudo pra buscar a liderança. Só sei que a minha determinação me fez voar além das minhas fronteiras físicas. Senti meu coração trabalhando numa faixa de frequência que jamais vi antes. Daí percebi, num determinado momento, que não existia mais ninguém a minha frente. Agora era manter a liderança, porém esforço para conquistá-la começou a cobrar o pedágio. No pórtico de 1 km para chegada, senti o urso nas minhas costas. É o que na gira do triathlón é conhecido como a trepada do urso, ou seja, o cansaço bate de uma só vez dando a impressão ao atleta que está carregando um urso de 500 quilos nas costas. Olhei pra traz e vi que o segundo e terceiro colocados vinham com a alça de mira apontada para mim. Tentei resistir ao máximo, porém a perna forte da bike drenou as minhas energias no Sprint final dos últimos duzentos metros. Os dois passaram por mim como cometas, disputando palmo a palmo cada centímetro do espaço que faltava para linha de chegada. Eu, já sem força nenhuma, limite-me a ser um espectador privilegiado daquela chegada emocionante. Contudo o terceiro lugar era bom demais pra mim, já havia me conformado. Foi quando percebi que o quarto colocado vinha babando atrás de mim. Faltava pouca mais de cinquenta metro para cruzar linha de chegada e o cara vinha aos trinta de mim. Eu querendo reagir, porém não tinha mais pernas. Já ouvindo o ritmo da respiração ofegante do cara próximo a mim, praticamente, nos três metros finais da chegada, perdi minha posição... Cheguei dando último suspiro. Tive tempo ainda de ver alguém de jaleco branco, e aí não vi mais nada, desmaiei de cansaço.

Tempo depois acordei com uma máscara de oxigênio no rosto e um mangueira de soro conectada em minhas veias.

Tão logo recobrei a consciência, com todo aquele oxigênio e àquela glicose toda nas veias, já estava me sentindo bem. Lembrei então que perdi a terceira posição por centímetros. Daí recordei que centenas de pessoas ali torciam, só não sei dizer se era para mim ou se era para o cara que me tomou o terceiro lugar. Mas aquela emoção da chegada e os gritos da galera fazem, hoje, parte dos ecos de minha vida. Contudo, foi a minha melhor participação numa prova desse nível. Estava feliz com minha performance.

Estava recolhendo as minhas coisas quando percebi que a Carla Ohata vinha em minha direção. E, com um abraço forte, parabenizou-me pelo meu quarto lugar. Disse-me com sorriso lindo no rosto:

- Parabéns, Fábio, a sua prova foi uma das emocionantes que já vi. Você esteve ótimo... Mostrou que tem coração.

Obrigado, mas perdi o pódio por centímetro... Falei-lhe.

- Fica assim não. Você tá no caminho certo. Com um pouquinho mais de treino você chega lá.

Despedi-me de Carla. Na verdade, tudo o que eu queria era tomar uma sauna, disponibilizada aos atletas, nas proximidade do palácio, tomar um bom banho e chegar no hostel para dormir profundamente. E assim foi...

Acordei por volta da 21:00 hs, ainda no domingo, vi que Emma e Henrique ainda dormiam. Sai do quarto a procura de Katya ou de François. Não vi nem dos dois ali nas proximidades do hostel. Resolvi ligar para o François. Descobri que ele estava num restaurante de massas italianas bem próximo dali de onde eu estava. Fui até o encontro dele. Quando entrei no restaurante, ele estava jantando. Sem cerimônia, fui logo atacando o prato que houvera desmobilizado para mim. Era um maravilhoso Tagliatelle com camarão e abobrinha. Sensacional... Não sei se era fome ou se era a cozinha do chefe, contudo o jantar estava maravilho e o melhor, inacreditavelmente, acompanhava o jantar um vinho italiano, Ginna Gagliardo, Barolo Riserva.

- Desculpe, François, mas vamos conseguir pagar o preço disso aqui ou será que vamos passar a vida toda aqui lavando pratos? Perguntei, um pouco assustado, ao François.

- Relaxa, caro amigo, você esqueceu que também sou correspondente internacional da Newsweek. Tudo isso é uma troca...

- A propósito, vc viu a Katya? Perguntei ao François.

- Curioso, ela também perguntou por vc... O que tá rolando? - perguntou ele a mim.

- Não, não tá rolando nada. Ela ficou de me apresentar umas amigas que estudam conservatório Rimisk-Korsakov. Mas, caro amigo, também não posso negar que tô de pneus arriados por ela. Ela é uma gracinha, e pior, é de uma formação cultural fora de série... Katya deixa qualquer um de queixo caído. Falei a ele.

- Também não vou lhe enganar.,. Katya me encanta muito. Disse-me.

- Mas, então, você desenrolou alguma coisa com ela? Perguntei-lhe.

- Não, apenas trocamos ideias no geral... papo sobre balé, política internacional... Todavia, ela se mostrou muito curiosa sobre o Brasil, quando falei a ela sobre o trabalho que fiz no vale do Jequitinhonha, ela ficou encantada. Pediu-me para que lhe enviasse algumas fotos e tudo o mais...

Assim que saímos do restaurante ficamos um pouco contemplando o rio Neva sobre a ponte dos cavalos, conhecida também como Anichkov. De lá se vê os ferry boats gigantes, que mais parecem navios de cruzeiros, ancorando e mesmo explorando um tour pelo grande rio neva. Depois dessa paradinha, fomos ao hostel e quando já chegando encontramos Katya.

- Olá chicos. Estava mesmo querendo encontrá-los. Então vamos junto conhecer um grupo de chicas, amigas minha, que fazem um som no mínimo diferente de tudo que tem sido feito por aí. E, você, Fábio, como foi lá em Peterholf? Falou Katya com um certo entusiasmo como se estivesse feliz em nos ver.

- Eu adoraria conhecer suas amigas. Podemos ir agora, pois daqui pra frente não tenho mais nenhum compromisso aqui e noite é apenas uma criança. Estou livre, leve e solto... Disse-lhe.

- Vamos lá, François?! Perguntei.

-Espera só um pouco, vou pegar minha câmara, quem sabe não faço uma matéria sobre elas. Disse, François.

- Demais, chicos. Elas vão ficar super Felizes. - falou, Katya.

Fomos em direção ao velho centro histórico de St Peter, passando por uma região muito antiga da cidade. Os prédios, em suas totalidades, eram de construção do séc. XVII e XVIII. As ruas eram pouco iluminadas ainda que pese a luminosidade da noite. O calçamento das ruas era de pedra lavrada que formava encaixe, entre elas, quase perfeito.

Enfim, após uns 30 minutos de caminhada, chegamos ao um prédio com aspecto de abandono. Sua fachada estava muito surrada, podia se vê algumas janelas com vidros quebrados, e a falta de manutenção era visível para não dizer que o estado mesmo era de total precariedade. O prédio era composto de 4 pavimentos.

Quando entramos no prédio, o vão de escadas era simplesmente assustador, rebocos caindo em pedaços, paredes pichadas, uma iluminação precária. Enfim, aquilo estava um pouco melhor, talvez, que a antiga sede da UNI, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ficava imaginado que tipo de gente moraria naquele lugar. As garotas moravam no 4º andar, sendo que pelos demais andares que passávamos ouvia-se gritos e sons ininteligíveis. Aquilo estava me deixando tenso, afinal, se acontecer alguma coisa comigo nesse fim de mundo quem iria me reclamar. Por um momento, cheguei até pensar em assalto de órgãos, todavia, enfim, chegamos ao ap. das minas.

Confesso que não gostei nenhum pouco das acomodações e da decoração. O ap estava muito bagunçado, o cheiro não era dos mais agradáveis, lembrava jaula. Garrafas de “refri”, vodka e lata de cervejas espalhadas por todos os cantos. Minha sorte é que não precisei ir ao banheiro, sabe lá o que se poderia encontrar naquele recinto...

Bom, tentei superar aqueles detalhes e transcender àquela situação. Katya nos apresentou uma a uma, Anna Yesipova, que era de longe a mais estudiosa delas todas, Karokhina, Maria Yudina e Ludmilla.

Elas, então, começaram a nos mostrar o tipo de composição musical que costumavam apresentar em seus shows. A princípio, tudo era muito, muito simples. Ludmilla com um serrote entre as pernas, sentada em uma cadeira, e com um arco de violoncelo, arqueava o serrote com uma das mãos, provocando ondulações em sua lâmina de aço, e à medida que fazia isso, com a outra mão incidia o arco do violoncelo sobre a lâmina do serrote. O som produzido pelo atrito do arco sobre a lâmina era algo surpreendente. Dava impressão que você estava no infinito do espaço sideral, completamente só, solto no vácuo, flutuando ao sabor de sensações induzida por aquele som e mais nada, sem pensamento algum na mente, você vagava ouvindo o som do espaço infinto. Depois, Maria, com umas garrafas de vidro, contendo em cada uma delas quantidade diversa de água, extraia sons que pareciam sons de xilofone, percutindo uma e outra com uma espécie de baqueta metálica. Karok com uma espécie de guitarra, diga se de passagem que esse instrumento foi mais exótico que já vi em toda minha vida, introduziu sons melódicos e harmônicos indescritíveis à composição tornando-a muito densa. E, finalmente, entra Anna com uma espécie de tambor xamã, contrapondo a harmonia com ritmo sincopado, e ao mesmo tempo que introduzia um canto a quatro vozes.

A verdade que a música produzida naquela atmosfera era bastante estranha. Era algo como que extraído do inconsciente, que vinha lá de seus ritos arcaicos, de suas fórmulas rítmicas atemporais e de seus cantos primitivos. Tanto assim, que até hoje não sei dizer se àquela música era boa o ruim, o fato é que o impacto, com certeza, que ela provoca sob o seu imaginário é avassalador, inesquecíveis e inenarrável, em função da cascata de emoções que provocava sob o ouvinte.

Contudo, após toda essa esquisitice, elas iam evoluindo a música para um tipo mais popular e mais festivo que é mais comumente conhecido como música Cossaca. Os ritmos eram irregulares (os compassos 5/4 e 7/8, por exemplo) como elementos naturais do folclore russo. Recorrendo àquilo que consideravam realmente russo, mas que no fundo no fundo, apesar da carga de identidade de folclore interiorano, aquela música tinha muito de origem asiática.

Mais tarde, Anna nos explicou que elas compuseram uma série de composições representativas do encontro integrado das culturas oriental e ocidental, que são sons que estão difusos na cultura da fronteira da Sibéria com a Mongólia. Também foi dito por ela: que buscavam uma música capaz de atingir profundamente tanto um ouvinte de orientação mágica como aquele que ouve apenas com o coração ou com o intelecto. Esse salto para uma sonoridade transparente integral pode ser identificado em alguns trechos por elas tocados: trechos do movimento lento do som do serrote, a guitarra, cujo nome dado ao instrumento era Moonlanderhead, e a percussão celeste “xamânica”. Essa música não era nada comercial, tratava-se de um patrimônio acústico esquecido que aguardava, oculto, uma redescoberta. Essa música, tinha também algo de gutural e rupestre, e, de certa maneira, fazia elas retornarem às fontes puras e primitivas do verdadeiro som universal, tendo inclusive elas pesquisado material tão antigo que remonta ao início da época cultural, aos “Vedantas” e ao drama da Grécia antiga.

Lembro que Anna disse em determinado momento: “A energia que se extrai dessa música faz bilhar no espírito a chama do primeiro sopro de vida e assim as dádivas espirituais são resgatadas. O tambor do coração chama, como o brilho da chama também encanta...”

Confesso que quando sai de lá, sentia-me um pouco ignorante, pois não consegui ver naquela música a beleza encantadora que katya, entusiasticamente, falava. Por outro lado, fiquei pensando que, em tempos de crise, como a que estava assolando toda a Rússia, naquele momento, onde viver da forma mais cotidiana possível, sem inventar muito, já era um grande desafio. Como, então, aquelas minas conseguiam viver com dignidade? Aquela música nada comercial, totalmente “underground”, como podia fazer com que quatro pessoas pudessem se sustentar economicamente num cenário de crise severo como aquele?

Gente, tem mais, além de toda aquela bagunça do ap, teve um hora que as minas embaladas pela música e com toda aquela agitação, bateu um cheiro tão esquisito... que por questão de educação não vou nem traduzir. Mas como se diz lá na minha terra, era um cheiro de “cuçuba” (nâo vou traduzir a palavra) misturado com “cecê” que, sinceramente, dava pra fazer vômito. Todavia, eu acho que devo ser um desses homens da idade da pedra cujo cérebro evolui pouco mais que um cérebro de lagarto. Uma vez que o maravilhoso encantamento que vinham dos olhos de Katya, hipnotizava-me a tal ponto que tudo que saí de sua boca era como música das mais bela. Com a libido lá em cima, não conseguia encontrar razão em nada, aliás, não queria compreender nada, apenas estava à espreita, feito um lobo sedento, aguardando o melhor momento para pegar a presa. Dizem que os apaixonados são estrupidos, uma vez que veem tudo de forma diferente. O azul do céu é mais azul, o verde das plantas é mais verde, os sons das coisas são mais estéreos, enfim, tudo passa ter um carácter transcendente. Ou seja, é o entorpecimento pelas sinapses do estado alterado de consciência provocado pela paixão. Esse brilho da onda da paixão é mais poderoso que o de qualquer outra droga psicotrópica já conhecida.

No dia seguinte, último dia meu em St. Peter, acompanhei katya até o ensaio do Ballet Don Quixote. Ela estava escalada como a segunda solista do balé. Lembrando que a obra ' Don Quixote' conta as aventuras fantásticas de um homem que sonha em ser um cavaleiro medieval. Em seu caminho ele encontra Kitri que, apesar de apaixonada por Basílio, um barbeiro da vila, está prometida a Gamacho, um rico comerciante. O casal recebe a ajuda de Dom Quixote e Basílio, fingindo-se de moribundo, consegue que o pai de Kitri lhe conceda a mão da filha em casamento. Ballet em 4 atos e 8 cenas, com a coreografia original de Marius Petipa e música de Ludwing Minkus.

O Fato mais relevante deste ballet é que exige dos bailarinos e bailarinas um alto nível técnico que os colocam quase à beira da perfeição, visto que as condições físicas dos mesmos têm que tá nas pontas dos cascos. De outra forma, eles não conseguem dançar o ballet, tamanha é a exigência do nível técnico. Além de leveza de pluma, os dançarinos têm que ter uma força física descomunal pra poderem voar da forma que fazem ou pra manterem-se em determinadas posições inacreditavelmente impossível para nós simples mortais.

Katya tinha um corpo simplesmente perfeito, talhado pela dança desde sempre, podia se notar em seu corpo os riscos característicos dos encontros dos grupamentos musculares, sendo que ao mesmo tempo que fazia uma força gigantesca para os saltos, a leveza de seus movimentos produzia uma graça espetacular, pois força e leveza se harmonizavam de tal sorte, em seu movimentos, criando, assim, uma poesia própria que quase nos levavam às lágrimas.

A Kitri, personagem da bailarina, Ekaterina Demina, nossa Katya, é ingênua e exala uma beleza no frescor da juventude. Segue todos os grandes passos do balé, esses de grau de dificuldade máximo. Seus "fouettes" são firmes e muitas vezes duplos. Uma das grandes características dessa personagem são os saltos. Os de Katya não são tão elevados quanto deveriam, seus solos são vistosos, sua técnica segue a tradição russa, apurada. Seu melhor momento foi o "grand pas de deux" do quarto ato. Uma boa bailarina para eles do Kirov, mas para mim, estupido e apaixonado, era a mais espetacular de todas as demais. Era como se eu estivesse assistindo o espetáculo da dança das estrelas celestiais saltitantes.

Assim que o ensaio, no teatro Mariinsky, terminou. Procurei-a nos bastidores. Eu estava tão eufórico que quando a encontrei, ela ainda suada e ofegante, segurei-a pelo braço, trouxe-a até junto de meu corpo, colando o meu ao dela, e dei-lhe um abraço muito forte e em seguida um beijo que ficará eternamente em minhas lembranças.

Já na terça-feira de manhã, no dia seguinte, estávamos eu e François embarcando para Paris. Olha... foi duro o caminho de volta até aeroporto de Pulkovo. Uma dor lacerante no coração ardia como que tivesse ácido a gotejar as suas paredes internas. Contudo precisava voltar a minha vida. Às vezes é tão bom estar em lugar onde não se precisa de sobrenomes e âncoras existenciais a limitar o exercício de tua liberdade que, quando tem que se deparar novamente com a tua própria realidade, essa volta pode se tornar dolorosa demais.

Assim foi minha partida de St. Peter, um lugar maravilhoso e talvez uma das belas cidade que tive a oportunidade de conhecer, porém devido ao fato do afastamento do idioma, confesso que não voltaria a St Peter, a menos que tivesse a certeza que katya estivesse lá me esperando na recepção do aeroporto. Devo dizer que o fato de Katya não nos ter acompanhando até aeroporto foi um alivio. Pois seria muito difícil ter que me despedir dela nessas condições. As sensações provadas pelo seu beijo, desenhou uma das mais linda tatuagem na parede interna do meu coração que com certeza levarei por toda eternidade de minha vida.

No próximo encontro, nessa maravilhosa jornada dentro do universo da música, viajaremos numa caravana tuareg, cruzando o deserto do Ténéré, na companhia do meu muito querido amigo El kabir, um músico de densa formação em música árabe. Então, até lá.

(Fábio Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 09/06/2013
Reeditado em 28/10/2021
Código do texto: T4333347
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