Marcas I

Marcas I

Ele era só mais um garoto peralta, de corpo franzino, pele escura, cabelo style Black Power. Quase ninguém sabia seu nome, só o conheciam pelo apelido: Bugalú. Era apaixonado por futebol.

Sua mãe saía para trabalhar quase todos os dias, saía bem cedinho, só aos domingos que ela não trabalhava na rua era, o único dia que Bugalú tinha sua mãe por perto (era a maior felicidade). O pai ele não conhecera, só sabia que havia falecido quando ele era ainda muito criança.

Tinha três irmãos e quatro irmãs. Ele era o mais novo, 10 ou 11 anos. Sua mãe, mulher trabalhadeira, era quase incansável, o único desejo era ver seus filhos alimentados o que nem sempre conseguia. Além de trabalhar de serviços gerais: lavando banheiros, chão e janelas, quando estava em casa aos domingos passava o dia lavando roupa de ganho para aumentar um pouco a renda que era insuficiente. Eram muitas bocas para ela alimentar sozinha.

Às vezes, ela saía para o trabalho com o coração apertado, pois, normalmente os últimos dias do mês faltava o alimento para seus filhos, seu corpo se deslocava para mais um dia de trabalho duro, mas seu coração apertado ficava com seus filhos... (quem dera pudesse deixar ao menos um punhado de farinha...) a única coisa que ela conseguia levar para o trabalho eram as lágrimas que às vezes custavam a parar de rolar em seu rosto cansado do trabalho árduo.

Em sua mente ela pensava: um dia meus filhos terão coisa melhor. Mas era preciso ter pulso firma, os moleques estavam sempre aprontando asneiras. Apesar do amor e carinho, sempre foi muito dura em suas correções. Se chegasse em casa e tivesse reclamação, apanhava todo mundo, e a surra vinha acompanhada com um longo sermão:

- Posso não ter comida para te dar, mas meus filhos não vão ser bandidos não. E o “pau quebrava”, ela batia nos moleques com cipó de araçá, batia tão forte que até os vizinhos tinham pena dos meninos, os gritos eram ensurdecedores, quando terminava ela mandava todos tomarem banho, e continuava a resmungar... – Vocês vão ver, se for preciso quebro todo mundo no pau, mas vou educar vocês tudo.

A mão ligeiramente era levada ao rosto, como que fosse limpar o suor, mas na verdade, era para conter a lágrimas, ela batia, mas doía muito mais nela do que nos meninos. Toda aquela pancadaria não passava de desespero de uma mãe que queria ver seus filhos longe da criminalidade, foi a única forma que aprendeu sobre educar filhos, foi assim que seus pais havia ensinado.

Sexta-feira, verão, tardinha. O sol imponente já ensaiava sua majestosa retirada, mas antes de ir ele sempre se debruçava por detrás de umas casinhas que ficava lá no morro, ele costumava assistir alguns minutos da pelada dos moleques da comunidade.

- Bugalú! Bugalú!

- oi!

- Bora pro baba!

Seu coração pulou de alegria, era a melhor hora do dia, a hora do baba. Mas logo se lembrou: aquele era um dia daqueles. Ele não tinha comido nada pela manhã, meio-dia encontrara um pouco de farinha que por sorte havia ficado na vasilha, só lhe restava a esperança de que sua mãe ao retornar do trabalho trouxesse algo para comer, mas não havia nenhuma garantia. Seu corpo debilitado pelas muitas vezes sem o alimento não iria aguentar correr atrás da bola... Respirou fundo...

- Hoje não posso, estou com o pé machucado!

A voz insistia: - Então, você fica no gol!

- Tá bom, vá na frente que eu já vou!

Sabia que não iria, mas era preciso se livrar do amigo.

Ao perceber que a turma já tinha saído, veio até a porta, era um barraco de madeira, em frente descia um córrego, tinha dias que cheirava mal, de lá dava pra ver o campinho de terra que ficava na baixada. Com olhos fixados no campo, só conseguia se imaginar lá com a turma correndo atrás da bola.

De repente alguem passou por ele, era Bicudo, outro que ninguém sabia o nome, como era de costume, Bicudo estava bem vestido, “ninguém sabia onde ele trabalha”, bermuda, sandália e boné, tudo de marca, corrente de prata, arma na mão. Como se isso não bastasse, todas as meninas da rua queriam “andar” com ele, o cara era o “super-homem”.

Em sua imaginação Bugalú se via como o Bicudo, cheio de dinheiro, aí sua não precisaria mais trabalhar tanto, não ia mais passar tanta fome... Mas logo retornava à sua verdadeira realidade: não fora isso que sua mãe o havia ensinado, não iria decepcioná-la.

Os olhos de Bugalú fixaram-se no campinho... Sua paixão. Será que sua mãe iria demorar? Teria algo para comer naquele dia?

De repente, gritos, correria, barulho de tiros. Todos correram para ver o que acontecera, mulheres com o olhar de desespero, pessoas desmaiando, a notícia que chegou era de se esperar – a polícia trocou tiros com Bicudo. Seu corpo com nove perfurações estava estendido no meio do campinho.

Agora aos 32 anos, cursando a faculdade de letras.

- Professor, por favor, repita a pergunta.

- Que perspectiva de futuro tem uma criança, que pela manhã, não tem um pão para comer, na porta de sua casa passa um esgoto a céu aberto, que não conheceu o pai e seu exemplo de herói é um bandido com uma arma na mão?

Bugalú respirou fundo, queria responder, não precisava, ele era a RESPOSTA.

Manoel de Jesus

Badega
Enviado por Badega em 08/06/2013
Reeditado em 14/06/2013
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