A ESCRAVINHA SEGUNDA PARTE

O tempo passando. O que não passava era a crueza de uma vida vazia de afeto .

Enquanto varria o quintal e cuidava da criação, Cabadil ia se imaginando num outro tipo de vida. Mas como? A que ela conhecia era apenas aquela, quer dizer, trabalhar, aguentar surras, cocorotes, pontapés. E silenciar.

Ela não queria muita coisa não. Certamente gostaria de vestir lindos vestidos e não aqueles panos feios e encardidos. E na cabeça, ah! aqueles chapéus enfeitados com fitas, que as sinhazinhas usavam eram tão bonitos!

O silêncio da escravinha até que muitas vezes não era por falta do que dizer. Era mesmo por falta de liberdade.

As sensações, os sonhos e os ideais estão dentro de todos os seres, escravos ou não, analfabetos ou não, pobres ou não. E como disse Clarice Lispector <até no capim vagabundo há desejo de sol .>

Havia manhãs em que Cabadil se sentia invadida por uma alegria que não sabia explicar. Tudo lhe parecia mais completo. O céu mais azul, o canto dos passarinhos mais perfeito e o ar mais perfumado.

Outra hora, a tristeza aparecia, trazendo-a para aquela vidinha sem atrativo algum, cuja monotonia só era quebrada pelas grosserias e rudezas da Sinhá quando não era rigorosamente obedecida.

Nos momentos de euforia residia toda a força de que precisava para suportar as malvadezas que ela e os de sua raça sofriam também. Naquela espécie de ausência da realidade opressora, surgia a esperança , essa sim, trazendo-lhe o sonho e o vislumbre, ainda que de um jeito rústico, de uma outra maneira de viver.

O seu corpo estava se transformando, já não era mais aquela escravinha magricela, comprida, desengonçada e sem graça. Estava se tornando bastante atraente. As formas iam se definindo, a pele escura realçando sedutora maciez, o andar naturalmente elegante, prenunciando a figura de mulher em cuja presença, num futuro bem próximo, seria impossível não botar reparo.

Nem a própria mocinha tinha essa consciência, mas a verdade era que mesmo com aqueles tecidos enrolados à cabeça à moda das escravas e qualquer vestido , ela já começava a chamar atenção. Sobretudo da sua senhora.

A mulher madura possui uma intuição, capaz de farejar mais depressa e bem antes dos outros, um perigo quando está para chegar.

A ojeriza da Sinhá ainda mais se exacerbara quando por uma ou duas vezes pareceu-lhe notar uns olhares oblíquos e furtivos de seu marido para a negrinha.

Embora soubesse que na condição de mulher naquele século XlX ela pouco pudesse fazer, a não ser “ vista grossa ”, não lhe agradava de jeito nenhum, a presença de Cabadil naquela casa. Daria um jeito de mandá-la para bem longe.

Convém saber que o momento histórico era de muita agitação, pois a lei Áurea estava pra ser assinada. Com a libertação dos escravos, os fazendeiros perderiam a mão- de- obra e teriam que substituí-la pelos italianos que estavam para chegar.

A missão poderia ser cumprida pelo moleque Jeromo.

Buscou um momento adequado e ordenou que ele saísse bem cedo com a escravinha, sem que qualquer pessoa soubesse da tarefa. Ou ao voltar, teria cortada uma de suas orelhas para aprender a ouvir bem. Isso foi dito em voz baixa, mas com muita veemência .

O negrinho imaginou que estava diante da grande oportunidade de fugir pra sempre. Porém, logo, logo, entristeceu-se.

_ Aquela peste da Sinhá ia mandar me procurar até me trazerem de volta embaixo de muita paulada- pensou.

Concluiu que era melhor obedecer. Aos infelizes escravos só cabia mesmo cumprir as vontades dos senhores.

E assim, foi ele chamar Cabadil para que ela recebesse as ordens , inclusive a de total silêncio acerca do que seria feito no dia seguinte.

O sol já ia alto quando os dois atravessaram os limites da fazenda. Avançaram uma boa estirada e então, fizeram uma parada pra abrir o farnel. Comeram e descansaram sob uma árvore.

O moleque Jeromo deveria deixá-la bem longe. Teriam portanto, muito que andar ainda.

Mas eis que as nuvens claras de um dia ensolarado davam lugar a outras, pesadas e escuras. Era como se a noite estivesse chegando bem depressa. E um vento forte, de uma hora pra outra começara a soprar. Tinham que apertar o passo pra que encontrassem um abrigo, antes de alcançá-los a tempestade que se anunciava.

Caminharam apressadamente até que viram uma pequena luz adiante. Lá chegaram quando os primeiros pingos grossos da chuvarada caíam.

O homem e a mulher que ali moravam, deram pousada aos escravos só até o dia seguinte, pois achavam que eram fugitivos e ficaram com medo de uma busca por parte dos senhores.

De manhã, passada a chuva, puseram-se a caminho de novo e após algum tempo o moleque anunciou a Cabadil que iria deixá-la no primeiro lugarejo que aparecesse. Ele precisava voltar.

_ Jeromo, cê vai me deixá só?

_ É que aquela cascavé pode mandá o capataz me panhá. E eu num quero perdê a orêia. Ce bem sabe cumo ela é. Cum raiva, parece até que ta parindo um uriço pelas orêia.

Assim, ela ficou num povoado distante, de casas bastante simples. Conseguiu se acomodar com uma família humilde, em troca de trabalho.

Só não conseguia atinar com os motivos de sua expulsão tão esquisita da Casa-Grande.

Em todos os lugares falava-se muito na iminência da libertação dos escravos. Ouvia-se muito sobre as campanhas dos abolicionistas. Talvez por isso, não tenha sido difícil encontrar um lugar onde se alojar. Procurou trabalhar bastante, como de costume. Por gratidão e para agradar a dona Lena, mãe de Henrique, rapaz feito, cujos olhares cobiçosos, a escravinha nem percebia. Externamente era quase adulta mas por dentro, menina.

De vez em quando ela se despia para banhar-se, estando só, depois de lavar a roupa da casa no riacho. Foi aí que, um certo dia, Henrique após esgueirar-se pelo mato, puxou sem que ela visse, toda a sua roupa.

Ao sair da água , completamente descuidada, caminhou vagarosamente em busca das vestes, sob a admiração do rapaz, que, escondido, deliciava-se com a visão daquele corpo tão perfeito, ancas, peitos, sexo, cintura, braços e pernas, apoiando uma cabeça elegante e altiva.

Antes que ela se desse conta da ausência das roupas, sentiu-se puxada por uns braços fortes e de repente, caída no mato. Tentou gritar, mas seus gritos não saíam, impedida que estava a boca carnuda e sensual com os beijos quentes e voluptuosos do rapaz, que ela logo reconheceu. Aturdida, jamais sentira aquilo. Mas entendeu que algo muito especial estava acontecendo. Abandonou-se às carícias. E como era bom! Sua pele macia era para o jovem um convite aos carinhos, ao corpo no corpo. E assim foi.

Parece que, a partir daí, tornada mulher verdadeiramente e seqüestrada pelo sentimento de amor, as inquietações pouco a pouco e do seu modo, começavam a emergir de uma alma tão singela.

Temia perder o que já ganhara.

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Na fazenda, a Sinhá estava aliviada com a ausência de Cabadil.

Certa manhã, o Coronel resolveu passar na cozinha do casarão (raramente ele fazia tal coisa ) e sem que a esposa presenciasse, ele perguntou às outras escravas por onde andava Cabadil.

_ Sabemo não, Coroné. Tem bem uns tempo que ela sumiu e num disse nada pra nóis. O muleque Jeromo também ficô uns dia sumido, já apareceu, mas num disse nada num sinhô.

Estava já arrependido por não ter logo se aproveitado da escravinha, assim que ela “botou peito”. Por onde andaria aquela negrinha , que cada dia mais se tornava um pitéu? Como pudera ele ter protelado o instante de saborear a frescura daquele corpo? Por que se ocupara tanto com os problemas da fazenda a ponto de deixar passar o momento de transformar em mulher a escrava , propriedade sua?

Procurou na senzala e até nas plantações mandou o capataz olhar, mas nada! Chamou o moleque Jeromo, que já andava se escondendo dele, o Sinhô, posto que se sentia entre a cruz e a caldeirinha.

Mas naquela circunstância, acabou por revelar o paradeiro da escravinha.

_Você vai comigo e com o capataz me mostrar o lugarejo. Avie, avie, chame o homem e pegue o meu cavalo . Ande logo, moleque!

Com isso, a Sinhá não contava. E esperava castigar o escravo por não ter guardado o segredo, assim que ele voltasse.

Mas não houve tempo. Era o dia 13 de maio de 1888. Enquanto o marido estava a caminho, pensando recuperar a sua escravinha, as notícias da abolição pipocavam por toda parte. Negros e negras, pulando e cantando a liberdade.

As nuvens espessas e o vento sombrio das injustiças, malvadezas e humilhações eram convertidos agora em um dia iluminado, que muitos já nem ousavam esperar mais.

O moleque Jeromo procurou seu caminho, agora , já sem medo.

Cabadil, livre e, ao mesmo tempo, presa ao amor de uma família, agora sua. Os filhos, certamente estavam por chegar.

E o Coronel Galdino Borges, que fosse agora esperar os italianos e pagar pelo trabalho deles, se quisesse.

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Esther Lessa
Enviado por Esther Lessa em 07/06/2013
Reeditado em 16/06/2013
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