MATSUDA
Chamava-se Matsuda. Além disso, pouco se sabia daquele senhor que morava junto ao píer e que tinha no olhar a sua marca registrada: sempre por cima dos óculos como quem espreita enxergar um segredo pairando nas palavras. Trazia no rosto os vincos de décadas à beira-mar, olhando o vai-e-vem das ondas e aspirando a brisa salina que vinha do oceano. Ao seu lado, guardava o velho barco e seu remo, já esculpido pelo sal de tantas viagens à busca do pão em forma de peixe.
Este velho pescador sempre foi um homem pragmático: não guarda saudades de nada, apenas lembranças; não crê que o passado possa retornar, tampouco espelha o futuro. Também pouco sorri, talvez porque sempre teve que ser guerreiro; em sua longa vida não houve espaços para prazer ou lazer.
Seu dia sempre começa com um café puro, bem quente, passado na hora como já faz há muitos anos. Com a caneca na mão senta-se à mesa e observa o píer pela janela de seu sobrado; o movimento dos navios faz exercitar sua memória ao lembrar-se de suas origens, pois fora ali que seus antepassados chegaram ao Novo Mundo trazendo na bagagem apenas roupas, calçados e as saudades da distante terra natal. Em cada amanhecer, assiste com genuíno espanto a explosão de um novo dia, com toda a gama de cores que traz e aproveita o momento para refletir sobre toda a sua vida.
Diferente de outros parentes e colegas, nunca desejou seguir uma carreira, antes preferiu buscar seu sustento num mar que conhecia de costa a costa e que nunca lhe fora um vil lar. Pelo contrário, o estuário que banha sua vila sempre foi uma casa acolhedora dando-lhe um ofício que, se não permitiu que vivesse como um fidalgo, pelo menos garantira sua sobrevivência.
Sai bem de manhã e só retornava ao Píer depois de um dia de sol e sal, a fim de vender os peixes às suas velhas conhecidas: Diva, Marta, Neusa e a mulher de Chico, seu amigo que um dia saiu para pescar e nunca mais voltou. Por uma certeza inabalável, essa senhora recusava-se ser chamada de “viúva”, pois a esperança de ver seu marido voltar não morria no poente. Quando não encontra comprador, Matsuda simplesmente prepara seu pescado com sal, limão e pimenta; assim transformava em refeição o que não conseguia vender aos vizinhos. Nesta rotina, todos os dias lhe pareciam iguais, conhecia ‘de cor’ os segredos do mar: os ciclos das marés, as estações do ano, o tempo da chuva e do estio e cada tipo de peixe que seria fisgado ou enredado nestes períodos. Seja qual fosse a época, costumava dizer que só pescava peixe “dos bons”.
Mas, nesta manhã, seu coração batia de forma diferente. Angustiado, triste ou simplesmente nostálgico, Matsuda olha para o horizonte sem navios, com o píer completamente vazio e busca na memória um momento na vida em que isso tivesse acontecido. Não recordava de nenhum.
Como o cumprimento de uma antiga profecia, ele percebeu naquele momento que o tempo havia passado; observa suas mãos, surrada pelo puxar das redes e vê que o tempo – sempre ele - roubara sua juventude e levara os navios e suas bandeiras para portos mais modernos, para outros píeres que ele nunca sonhou em conhecer.
Ao se recobrar deste momento de transe, apenas ajeita seus óculos e sorve mais um gole de café, já frio, para levantar-se de sua mesa e caminhar pela sala. De controle da situação, entende que o tempo não foi cruel consigo, apenas fez a captação de sua vida que, em troca, ofereceu-lhe a própria existência. Concluiu que não podia fazer mais nada a não ser continuar assistindo a sua passagem deste tempo e esperar o dia comum a todos os viventes.
Neste instante, como quem acorda de um sonho, Matsuda desce ligeiro as escadas de seu sobrado e, movendo seu velho barco em direção ao Píer, lança-se ao mar, pois acabou de lembrar que Nara, outra de suas fiéis freguesas, havia pedido um peixe para o jantar. E dos bons.