A Fada Madrinha
A Fada Madrinha
O homem desceu a avenida por mais duas quadras e ali não lhe parecia que iria encontrar. Em frente a uma venda, dessas que comercializam produtos de limpeza a granel, com vassouras coloridas dependuradas na porta, havia um velho num arremedo de cadeira.
- O sr. sabe onde existe uma Lan House por aqui?
O velho demorou para encolher os ombros. Não entendera a pergunta. O homem se aproximou, explicando o conteúdo da indagação, em pormenores.
O velho achou graça, embora aquilo não fosse bem um sorriso.
- Quem sabe lá no fim... – fez ele erguendo o braço direito, repleto de veias – o sr. vai descendo, lá no fim tem um Largo. Nessas bandas só tem biqueira e boteco. E um mercadinho. O sr. não é daqui, certo?
O homem meneou a cabeça e com o braço direito executou um gesto misto de adeus e obrigado, seguindo na direção apontada.
Andou mais três, quatro quadras, sem calçada, sem árvores, sem sol graças a um acúmulo inusitado de nuvens, duas motos passaram por ele em alta velocidade, logo em seguida uma viatura, carros passam, não com o mesmo frêmito de um grande centro, e, num estalo, como se fosse uma grande idéia sem, no entanto, de fato ser, divisou um ponto de ônibus e ficou por ali minutos poucos, nem notou uma mulher com dificuldade para subir na condução, se tivesse notado teria ajudado, também não reparou no destino, apenas entrou e, ao sentar, seu celular tocou.
- Oi, eu ia te ligar, mas estava sem sinal, daí pensei em te mandar um e-mail, para o caso da gente não conseguir se falar. Não sei, foi estranho, deixei o carro com o Guilherme e vim embora. Não dava mais pra ficar lá. Ah, nem sei se foi estranho, ela levou a gente para perto de um riacho, para medir os fundos do terreno e de repente ela disse que ia entoar um cântico, ficou tudo muito esquisito. Entendeu o motivo do e-mail? Sua irmã não está bem. Olha, a ligação tá ruim... To voltando, acho que to voltando... Não sei se vai dar tempo da gente se encontrar, mas é sua irmã, talvez ela precise de ajuda e o e-mail iria te colocar ao par da situ...
A ligação caiu. “Estou pisando em ovos” pensou ele.
À medida que o ônibus se deslocava a paisagem ia, lentamente, mudando de aspecto e passageiros de todas as cores, gêneros e idades iam locupletando os assentos antes vazios. “Agora as ruas tem calçadas, e árvores dão o ar da graça a cada xis metros percorridos. Olhe, uma rua de paralelepípedos.”
Um sujeito sentara-se ao lado dele, deixando no colo um jornal dobrado. Ficou com vontade de perguntar para onde o veículo se dirigia, embora ao mesmo tempo que guardasse uma certa vergonha por não saber, sentia também um ponta de intuição de estar indo para a direção certa. E mais – ele começava a reconhecer a redondeza, e aí ruminou com uma tênue indignação: “Aquela mulher fez uma volta absurda para nos trazer ao extremo da Zona Sul de São Paulo. Que doideira...”.
- Por essas bandas, de noite, é perigoso – disse o sujeito ao seu lado.
Ele balançou a cabeça e no fundo havia em si um desejo de travar conversação, dizendo, a princípio, que tinha idade suficiente para proclamar sem sombra de dúvida, pelo que já vira, que o brasileiro é bom em essência, mas está fazendo um tremendo esforço para se tornar ruim. E é bem possível que consiga.
Mas não disse nada. E nisso o celular tocou.
- Fala, Guilherme... Só agora você percebeu? Sei... Não, perdi o interesse na coisa toda...Você traz o carro pra casa? Daí a gente conversa... Ela melhorou? Hummm, ta, vem com cuidado. Tchau.
“Estão trocando os postes nessa avenida... Olha, aquele fábrica antiga, já era antiga quando eu era moço. Está para demolir. Vim oferecer serviços de propaganda, isso mesmo, em 1984...”.
Pessoas sobem e descem da condução. Ele espia parte da manchete no jornal dobrado – Conflito no Oriente Médio. O sujeito percebe e diz amavelmente: quer ler?
Ele recusa com um muito obrigado e explica estar sem óculos.
O sujeito desata, num ritmo muito peculiar, que não sabe ler, quer dizer, praticamente não sabe, que quando tem de ir assinar o nome, em cartórios, por exemplo, o faz com muita dificuldade, que sempre teve dificuldade, desde criança, que largou a escola no primeiro ano por não aprender nada, e, em virtude de ser alto e corpulento se envolveu com os mais velhos. E só em coisa que não prestava.
Suas mãos são fortes e muito calejadas.
O celular tocou de novo e desta feita ele atendeu de modo ríspido:
- Oi Guilherme, deixa eu te dizer, não liga de novo porque estou tentando falar com a Bete, o celu tava sem sinal até agora. Quero falar antes dela embarcar. Minha bateria ta acabando, entendeu? Traz o carro pra casa, ta bom, não tem problema, essas coisas acontecem, depois a gente vê outro imóvel...tchau.
Outra paisagem deu lugar, talvez a mágica seja um truque do movimento das coisas todas que se sobrepõem, que mudam as aparências, tudo o que é preciso é um movimento.
- Tem certeza de que não quer o jornal? Vou descer no próximo ponto. Apesar de não saber ler muito bem, eu sei porque esses caras brigam tanto – disse, apontando para a manchete – porque lá faz muito calor e não tem água.
Despediram-se com a cordialidade dos que sabem que jamais irão se encontrar outra vez.
Ele consultou o horário e calculou que talvez fosse possível encontrar a Bete no aeroporto. Seria necessária mais uma condução. A questão é que ela não atende o celular. Mas também, para que tanto drama? Ou, talvez, queira vê-la apenas para lhe dar um beijo. Quisera saber, ali, qual o clamor mais importante, o beijo, ou tirar da frente a hipótese da irmã trabalhar com ele futuramente no projeto de construção da sede da ONG?
No vai e vem de pessoas que não raro hipnotiza o ser humano, refletiu que essa experiência fora estranha, não se tratava de uma leitura dos sensores comuns - o ego e conseqüente desapontamento e contrariedade. Fora apenas um impacto de aparência inócua que ainda assim atingira alguma parte de seu ser.
“Vôo da Gol, para Fortaleza, às 16:30”. Subitamente se lembrou disso, sabia do destino, ela falara por alto, se encontraram por acaso, como se essa crença fosse válida, depois de tantos anos passaram uma noite juntos, ela lhe falou da irmã, que fazia dois turnos, um como arquiteta, outro com corretagem de imóveis, ele contou seus planos, as pontas se juntaram e hoje...Ufa...Queria se livrar disso. Baldeou conduções e apostou em Congonhas.
“Em meia hora chego lá”. “E vou falar o que? Sua irmã é maluca e você, no mínimo está tão maluca quanto ela?” A mulher combina de nos mostrar um terreno, “não se preocupe, está tudo em família”, ela não sabe dizer exatamente aonde é, pegam a Raposo Tavares daí se embrenham em intermináveis ruas e avenidas para chegar no extremo da Represa de Guarapiranga. Seria o mesmo que, alguém saindo de São Paulo com destino a Buenos Aires antes passasse pela África do Sul. Chegando lá ela mostra uma casa caindo aos pedaços, pede licença para ir ao banheiro e quando volta está num vestido branco transparente, descalça, cantarolando, ele segura no braço de Guilherme, filho de um amigo que trabalha com ele há anos, enquanto ela rodopia, como se estivesse num circo, ou num palco, e começa a bradar, porque o termo é literalmente esse, bradar, “eu sou a fada madrinha, e vejo as correntes de almas que vão encarnar e estabeleço suas missões”, daí ela dança, dança, um dos seios sai para fora do vestido, ela o recoloca de volta, rodopia, Guilherme enseja que vai rir à beça, ele aperta o braço do rapaz, aos 27 anos a gente gargalha, quando muito, aos 55 sabe-se que há algo errado, ela pula e grita, “venham até o riacho, venham ver a corrente de almas, eu sou a fada madrinha”, ele e Guilherme a seguem, perplexos, há um outro sujeito que fora junto, dizia-se amigo dela, um tal de Sírio, calado, compenetrado, nada faz, ela continua:
“Estão vendo as almas? Hihahahahahaha, essa aqui vai ser puta, essa aqui vai ser puta, essa aqui vai ser puta, puta, puta, puta...” Ela aponta com o dedo indicador, como se este fosse uma varinha de condão, e daí gargalha: “Hihahahahahaha, esse vai ser traficante, outro traficante, aquele lá traficante, aquele outro assaltante, assaltante, assaltante, ops, essa vai ser bailarina, aquele vai ser piloto, ops, eu sou a fada madrinha, eu vejo as correntes de almas...”.
Ela saltita, suas formas são arredondadas e cada uma das unhas dos pés exibe uma cor diferente, Guilherme se curva de tanto rir, o tal Sírio enseja alguma fortuita menção de talvez acalmá-la, parecia que ele já havia visto isso antes.
Qual...
Chegou em Congonhas com 15 minutos de atraso em relação ao vôo, Bete não atende o celular, ele começa a sentir raiva, fome e cansaço. No balcão, foi como se esperasse por isso, a atendente sorri explicando que o jato acaba de decolar.
- O sr. perdeu o vôo?
Ele gesticula com a mão se afastando e se indagando “será que aqui tem uma Lan House? Palavra que eu quero chegar em casa e nunca mais pensar nesse assunto. Vou escrever assim pra Bete: sua irmã precisa de ajuda profissional. Foi muito bom te encontrar. Nos vemos dentro de 20 anos!”
Celular de novo, era o Guilherme, ficou com vontade de chorar, de tanta raiva. Guilherme queria contar os desdobramentos do episódio, que ela desmaiara, que quando voltou a si não lembrava de nada, e o tal Sírio, sempre quieto, pediu uma carona para Embu das Artes e...
- Guilherme, vai acabar a bateria! Tchau! – e desligou celular.
Mora na Zona Oeste da cidade, uma viagem, daqui. Tinha de dar a mão a palmatória e reconhecer que estava abalado, a imagem do vestido branco saltitando e gargalhando, as almas, qual... Havia um único táxi no ponto.
- Vamos para perto do CEASA – disse ao motorista – são duas retas, Bandeirantes e marginal Pinheiros. O sr. tem música clássica nesse aparelho?
- Tenho até um CD do Villa-Lobos – replicou o motorista. Nisso uma mulher brota da calçada, pois foi exatamente essa a impressão, como num desenho animado. E animadas eram suas feições. Jovem, 25 anos no máximo, estica os dois braços pedindo para o táxi esperar.
- Moço – ela olhou para ele – podemos dividir esse táxi até o Itaim? Se não for inconveniente. Estou atrasadíssima para a consulta...
O motorista olhou para ele, ele encolheu os ombros e ela entrou, agradecendo deveras. Pela barriga devia estar prestes a parir.
Soltando um grande suspiro, olhou-a de modo disfarçado. Ela tira da bolsa um pacote de bolachas e uma garrafa de água.
- Moço, o senhor é um anjo, muito obrigada mesmo – exclamou ela – ah...estou entrando no oitavo mês. Gêmeos, um menino e uma menina. Mal posso esperar.
Ele sorriu fechando os olhos.
“Vou precisar re-escrever o roteiro deste dia”, pensou.
A Fada Madrinha
O homem desceu a avenida por mais duas quadras e ali não lhe parecia que iria encontrar. Em frente a uma venda, dessas que comercializam produtos de limpeza a granel, com vassouras coloridas dependuradas na porta, havia um velho num arremedo de cadeira.
- O sr. sabe onde existe uma Lan House por aqui?
O velho demorou para encolher os ombros. Não entendera a pergunta. O homem se aproximou, explicando o conteúdo da indagação, em pormenores.
O velho achou graça, embora aquilo não fosse bem um sorriso.
- Quem sabe lá no fim... – fez ele erguendo o braço direito, repleto de veias – o sr. vai descendo, lá no fim tem um Largo. Nessas bandas só tem biqueira e boteco. E um mercadinho. O sr. não é daqui, certo?
O homem meneou a cabeça e com o braço direito executou um gesto misto de adeus e obrigado, seguindo na direção apontada.
Andou mais três, quatro quadras, sem calçada, sem árvores, sem sol graças a um acúmulo inusitado de nuvens, duas motos passaram por ele em alta velocidade, logo em seguida uma viatura, carros passam, não com o mesmo frêmito de um grande centro, e, num estalo, como se fosse uma grande idéia sem, no entanto, de fato ser, divisou um ponto de ônibus e ficou por ali minutos poucos, nem notou uma mulher com dificuldade para subir na condução, se tivesse notado teria ajudado, também não reparou no destino, apenas entrou e, ao sentar, seu celular tocou.
- Oi, eu ia te ligar, mas estava sem sinal, daí pensei em te mandar um e-mail, para o caso da gente não conseguir se falar. Não sei, foi estranho, deixei o carro com o Guilherme e vim embora. Não dava mais pra ficar lá. Ah, nem sei se foi estranho, ela levou a gente para perto de um riacho, para medir os fundos do terreno e de repente ela disse que ia entoar um cântico, ficou tudo muito esquisito. Entendeu o motivo do e-mail? Sua irmã não está bem. Olha, a ligação tá ruim... To voltando, acho que to voltando... Não sei se vai dar tempo da gente se encontrar, mas é sua irmã, talvez ela precise de ajuda e o e-mail iria te colocar ao par da situ...
A ligação caiu. “Estou pisando em ovos” pensou ele.
À medida que o ônibus se deslocava a paisagem ia, lentamente, mudando de aspecto e passageiros de todas as cores, gêneros e idades iam locupletando os assentos antes vazios. “Agora as ruas tem calçadas, e árvores dão o ar da graça a cada xis metros percorridos. Olhe, uma rua de paralelepípedos.”
Um sujeito sentara-se ao lado dele, deixando no colo um jornal dobrado. Ficou com vontade de perguntar para onde o veículo se dirigia, embora ao mesmo tempo que guardasse uma certa vergonha por não saber, sentia também um ponta de intuição de estar indo para a direção certa. E mais – ele começava a reconhecer a redondeza, e aí ruminou com uma tênue indignação: “Aquela mulher fez uma volta absurda para nos trazer ao extremo da Zona Sul de São Paulo. Que doideira...”.
- Por essas bandas, de noite, é perigoso – disse o sujeito ao seu lado.
Ele balançou a cabeça e no fundo havia em si um desejo de travar conversação, dizendo, a princípio, que tinha idade suficiente para proclamar sem sombra de dúvida, pelo que já vira, que o brasileiro é bom em essência, mas está fazendo um tremendo esforço para se tornar ruim. E é bem possível que consiga.
Mas não disse nada. E nisso o celular tocou.
- Fala, Guilherme... Só agora você percebeu? Sei... Não, perdi o interesse na coisa toda...Você traz o carro pra casa? Daí a gente conversa... Ela melhorou? Hummm, ta, vem com cuidado. Tchau.
“Estão trocando os postes nessa avenida... Olha, aquele fábrica antiga, já era antiga quando eu era moço. Está para demolir. Vim oferecer serviços de propaganda, isso mesmo, em 1984...”.
Pessoas sobem e descem da condução. Ele espia parte da manchete no jornal dobrado – Conflito no Oriente Médio. O sujeito percebe e diz amavelmente: quer ler?
Ele recusa com um muito obrigado e explica estar sem óculos.
O sujeito desata, num ritmo muito peculiar, que não sabe ler, quer dizer, praticamente não sabe, que quando tem de ir assinar o nome, em cartórios, por exemplo, o faz com muita dificuldade, que sempre teve dificuldade, desde criança, que largou a escola no primeiro ano por não aprender nada, e, em virtude de ser alto e corpulento se envolveu com os mais velhos. E só em coisa que não prestava.
Suas mãos são fortes e muito calejadas.
O celular tocou de novo e desta feita ele atendeu de modo ríspido:
- Oi Guilherme, deixa eu te dizer, não liga de novo porque estou tentando falar com a Bete, o celu tava sem sinal até agora. Quero falar antes dela embarcar. Minha bateria ta acabando, entendeu? Traz o carro pra casa, ta bom, não tem problema, essas coisas acontecem, depois a gente vê outro imóvel...tchau.
Outra paisagem deu lugar, talvez a mágica seja um truque do movimento das coisas todas que se sobrepõem, que mudam as aparências, tudo o que é preciso é um movimento.
- Tem certeza de que não quer o jornal? Vou descer no próximo ponto. Apesar de não saber ler muito bem, eu sei porque esses caras brigam tanto – disse, apontando para a manchete – porque lá faz muito calor e não tem água.
Despediram-se com a cordialidade dos que sabem que jamais irão se encontrar outra vez.
Ele consultou o horário e calculou que talvez fosse possível encontrar a Bete no aeroporto. Seria necessária mais uma condução. A questão é que ela não atende o celular. Mas também, para que tanto drama? Ou, talvez, queira vê-la apenas para lhe dar um beijo. Quisera saber, ali, qual o clamor mais importante, o beijo, ou tirar da frente a hipótese da irmã trabalhar com ele futuramente no projeto de construção da sede da ONG?
No vai e vem de pessoas que não raro hipnotiza o ser humano, refletiu que essa experiência fora estranha, não se tratava de uma leitura dos sensores comuns - o ego e conseqüente desapontamento e contrariedade. Fora apenas um impacto de aparência inócua que ainda assim atingira alguma parte de seu ser.
“Vôo da Gol, para Fortaleza, às 16:30”. Subitamente se lembrou disso, sabia do destino, ela falara por alto, se encontraram por acaso, como se essa crença fosse válida, depois de tantos anos passaram uma noite juntos, ela lhe falou da irmã, que fazia dois turnos, um como arquiteta, outro com corretagem de imóveis, ele contou seus planos, as pontas se juntaram e hoje...Ufa...Queria se livrar disso. Baldeou conduções e apostou em Congonhas.
“Em meia hora chego lá”. “E vou falar o que? Sua irmã é maluca e você, no mínimo está tão maluca quanto ela?” A mulher combina de nos mostrar um terreno, “não se preocupe, está tudo em família”, ela não sabe dizer exatamente aonde é, pegam a Raposo Tavares daí se embrenham em intermináveis ruas e avenidas para chegar no extremo da Represa de Guarapiranga. Seria o mesmo que, alguém saindo de São Paulo com destino a Buenos Aires antes passasse pela África do Sul. Chegando lá ela mostra uma casa caindo aos pedaços, pede licença para ir ao banheiro e quando volta está num vestido branco transparente, descalça, cantarolando, ele segura no braço de Guilherme, filho de um amigo que trabalha com ele há anos, enquanto ela rodopia, como se estivesse num circo, ou num palco, e começa a bradar, porque o termo é literalmente esse, bradar, “eu sou a fada madrinha, e vejo as correntes de almas que vão encarnar e estabeleço suas missões”, daí ela dança, dança, um dos seios sai para fora do vestido, ela o recoloca de volta, rodopia, Guilherme enseja que vai rir à beça, ele aperta o braço do rapaz, aos 27 anos a gente gargalha, quando muito, aos 55 sabe-se que há algo errado, ela pula e grita, “venham até o riacho, venham ver a corrente de almas, eu sou a fada madrinha”, ele e Guilherme a seguem, perplexos, há um outro sujeito que fora junto, dizia-se amigo dela, um tal de Sírio, calado, compenetrado, nada faz, ela continua:
“Estão vendo as almas? Hihahahahahaha, essa aqui vai ser puta, essa aqui vai ser puta, essa aqui vai ser puta, puta, puta, puta...” Ela aponta com o dedo indicador, como se este fosse uma varinha de condão, e daí gargalha: “Hihahahahahaha, esse vai ser traficante, outro traficante, aquele lá traficante, aquele outro assaltante, assaltante, assaltante, ops, essa vai ser bailarina, aquele vai ser piloto, ops, eu sou a fada madrinha, eu vejo as correntes de almas...”.
Ela saltita, suas formas são arredondadas e cada uma das unhas dos pés exibe uma cor diferente, Guilherme se curva de tanto rir, o tal Sírio enseja alguma fortuita menção de talvez acalmá-la, parecia que ele já havia visto isso antes.
Qual...
Chegou em Congonhas com 15 minutos de atraso em relação ao vôo, Bete não atende o celular, ele começa a sentir raiva, fome e cansaço. No balcão, foi como se esperasse por isso, a atendente sorri explicando que o jato acaba de decolar.
- O sr. perdeu o vôo?
Ele gesticula com a mão se afastando e se indagando “será que aqui tem uma Lan House? Palavra que eu quero chegar em casa e nunca mais pensar nesse assunto. Vou escrever assim pra Bete: sua irmã precisa de ajuda profissional. Foi muito bom te encontrar. Nos vemos dentro de 20 anos!”
Celular de novo, era o Guilherme, ficou com vontade de chorar, de tanta raiva. Guilherme queria contar os desdobramentos do episódio, que ela desmaiara, que quando voltou a si não lembrava de nada, e o tal Sírio, sempre quieto, pediu uma carona para Embu das Artes e...
- Guilherme, vai acabar a bateria! Tchau! – e desligou celular.
Mora na Zona Oeste da cidade, uma viagem, daqui. Tinha de dar a mão a palmatória e reconhecer que estava abalado, a imagem do vestido branco saltitando e gargalhando, as almas, qual... Havia um único táxi no ponto.
- Vamos para perto do CEASA – disse ao motorista – são duas retas, Bandeirantes e marginal Pinheiros. O sr. tem música clássica nesse aparelho?
- Tenho até um CD do Villa-Lobos – replicou o motorista. Nisso uma mulher brota da calçada, pois foi exatamente essa a impressão, como num desenho animado. E animadas eram suas feições. Jovem, 25 anos no máximo, estica os dois braços pedindo para o táxi esperar.
- Moço – ela olhou para ele – podemos dividir esse táxi até o Itaim? Se não for inconveniente. Estou atrasadíssima para a consulta...
O motorista olhou para ele, ele encolheu os ombros e ela entrou, agradecendo deveras. Pela barriga devia estar prestes a parir.
Soltando um grande suspiro, olhou-a de modo disfarçado. Ela tira da bolsa um pacote de bolachas e uma garrafa de água.
- Moço, o senhor é um anjo, muito obrigada mesmo – exclamou ela – ah...estou entrando no oitavo mês. Gêmeos, um menino e uma menina. Mal posso esperar.
Ele sorriu fechando os olhos.
“Vou precisar re-escrever o roteiro deste dia”, pensou.