Árcades e Parnasianos

Como de costume, o dia para Olavo Arcadino, de 13 anos, começou com palavras meigas de sua mãe:

– Bom dia!

Essas palavras, que nasceram tão calmas e inofensivas quanto uma pequena maré a beira-mar, transformaram-se rapidamente em um devastador tsunami ao som do ranger das cortinas, seguido do forte feixe de luz solar que rumou diretamente ao encontro de suas pálpebras semiabertas. Junto a isso tudo, vieram novas palavras de sua mãe, agora ásperas, assim como todo o resto já havia se tornado:

– Hora de acordar, Olavo! Você sabe muito bem que receberemos visitas para o almoço e é bom que esteja prontinho quando eles chegarem.

Olavo, parecendo aturdido, perguntou:

– Eles quem? Puxa vida... Esqueci que receberíamos visitas, tanto é que combinei que almoçaria na casa de um colega hoje – algo que não tinha feito, pois sabia exatamente quem apareceria nessa tal visita e não desejaria estar, de modo algum, presente quando essa pessoa chegasse. Tratava-se de um jovem apenas dois anos mais velho do que ele, chamado...

– Cláudio Manuel! – exclamou sua mãe com uma entonação enfurecida – É só porque ele virá que você está me dando essa desculpa esfarrapada de que vai almoçar na casa de um colega, não é?!

– Não mãe, claro que não é por isso – respondeu com uma voz pacificadora, pois sabia o quanto sua mãe ficava furiosa quando seu filho não queria ficar na presença do pobre Manuel que, por viés do destino, nasceu mudo. Por algum motivo, Olavo se sentia constrangido só de pensar em ter o garoto por perto.

Já Manuel, que percebia o constrangimento alheio, não se importava nada e nem deixava que seu problema o fizesse mergulhar em uma melancolia que fosse capaz de ofuscar seu belo sorriso, que sempre mantivera estampado no rosto por onde quer que passasse. Por conta disso, os moradores de Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, olhavam para o jovem sempre com admiração. Sem que ninguém soubesse, Manuel desdenhava da ideia de que uma vida poderia parecer melhor ao ser igualada à outra, tendo como objeto de comparação os problemas que uma tenha ou deixe de ter. “Você fica se maldizendo, sendo que essa pessoa tem um problema assim e aquela um problema assado”, ele ouvia muito isso das pessoas a sua volta, que usavam o próprio Manuel como modelo de problema que alguém pudesse observar/refletir para, após a conclusão, se inspirar e perceber que sua vida não era das piores. Para ele, esse tipo de comparação tornava as pessoas amplamente mesquinhas e egoístas. “Os problemas de cada um são o que são independentemente do problema alheio”, refletia.

No mais, Manuel era um rapaz que transmitia boas energias, principalmente por conta do semblante sorridente já mencionado. Seus pais, José Inácio e Maria Ifigênia, não eram muito diferentes. Desde que o seu problema fora diagnosticado pelos médicos da região, eles o incentivavam a viver como uma criança que pudesse se comunicar normalmente, não deixando que ele se sentisse diferente ou inferior a alguém. Agiam como portadores de uma cura movida pela fé e aguardavam, todos os dias, pelo momento em que Manuel conseguisse emitir alguma palavra (mesmo sendo algo impossível de acontecer, segundo os médicos), nem que fosse uma única sequer, para saciar o prazer efêmero de ouvir dos filhos: “amo vocês” – júbilo destinado aos pais desde o primeiro momento em que assim se tornam. Por respeito à família, os médicos da cidade chegavam a, cientificamente, apoiar a crença dos pais. Baseado em uma espécie paradoxal de “fé medicinal”.

– Tive uma ótima ideia! – disse a mãe de Olavo, que prontamente já direcionava o dedo indicador para o filho – Leve-o com você para esse almoço na casa de seu colega e apresente alguns amigos para ele. Tenho certeza que você vai aprender a gostar dele, apenas dê-lhe uma chance – desta vez, falava com pressa enquanto puxava o cobertor cinza que cobria Olavo (seu cobertor favorito que usava para se esconder de monstros imaginários quando criança). – E não me envergonhe na frente deles como você sempre costuma fazer – e complementou – Filho, ele só nasceu doente, o pobre Manuel não tem culpa alguma.

“Mesma asneira de sempre. Não vou levá-lo de jeito nenhum!”, pensou Olavo. Mas como se surgisse um espelho que refletisse o oposto de seu pensamento naquele momento, Olavo respondeu de pronto:

– Tudo bem, mãe. Eu levo-o comigo. – ele só teria que pensar para onde o levaria realmente, pois não havia o tal almoço na casa do colega tal. “Eu o levarei para qualquer lugar. De qualquer modo, ele não contará nada a ninguém quando voltarmos”, arquitetou. Do mesmo plano metafísico de onde veio essa ideia, surgiu uma risada sarcástica e ingênua ao mesmo tempo, que ecoava e se expandia feito um balão em sua mente vazia, até então. Mal sabia que aquele dia seria fundamental para sua transcendência, principalmente, sobre sua própria espécie. Esse dia seria tão fundamental à sua vida, quanto o dia de um portador de uma doença terminal que descobre ter se curado miraculosamente, sem esforço algum.

Sua mãe saiu do quarto com um contentamento exuberante. Sentia que desta vez, seu filho não mentia. E de fato ele não mentiu sobre “eu levo-o comigo”, exceto pelo lugar aonde levá-lo. Com o passar de alguns minutos, tudo já estava pronto: a mesa farta, talheres organizados, tudo o que se pode esperar de uma família que vive no padrão de uma sociedade organizada e evoluída que, apesar de jurarem de pé junto que lutam pela igualdade social, costumeiramente diferenciam-se ao classificarem os outros como “classe isso, classe aquilo”, classes e mais classes para separar o joio do trigo e forçar um tipo de pensamento sobre direitos iguais exclusivamente a um coletivo restrito. Isso seria o tipo de coisa que deixaria Olavo enojado só de pensar.

A mãe de Olavo adorava receber visitas, principalmente, como a desse dia. José Inácio e Maria Ifigênia eram um dos poucos amigos restantes do falecido Vicente, pai de Olavo.

Após algum tempo de espera, Olavo começava a ficar esperançoso de que a visita não viria. Até que o som da campainha acabasse com suas esperanças, como um grito que ao estabelecer uma frequência sonora em uma taça de cristal, consegue estilhaçá-la. Na verdade, sem que o jovem pudesse imaginar, o som da campainha seria o badalar de um sino que trazia a real esperança, que nem sequer existia e muito menos poderia vir a ser despedaçada.

Visitantes já na porta. A mãe de Olavo os recebe com uma demonstração de carinho tão enorme que parece que eles pertencem a algum tipo de organização secreta ou, no mínimo, muito importante. Olavo olha aquilo com um menosprezo e não entende o porquê daquela bajulação toda. Então, de repente, ele observa que Manuel, ainda na porta, está vendo aquela “atuação teatral” com o mesmo olhar que ele próprio estava a pouco fazendo. Manuel percebe que está sendo observado e, no mesmo instante, seu olhar se entrelaça com o de Olavo. Este recua na hora, tal como um soldado que foge ao perceber a chegada de uma grande investida inimiga.

Manuel é o último a entrar e, para o constrangimento de Olavo, ele vem em sua direção com a mão estendida para cumprimentá-lo, enquanto Olavo permanece imobilizado. Então, os dois se cumprimentam pela primeira vez, já que Olavo sempre dera um jeito de evitar isso (o que envergonhava sua mãe, como ela mesma dizia e repetia). Seu receio era de acabar “pagando mico” entre seus amiguinhos ao ser visto andando com um garoto diferente, esse era um dos preconceitos que Olavo carregava consigo em poucos anos de convívio com a sociedade. E a “diferença” se acentuou naquele momento quando Manuel, ao invés de cumprimentá-lo no estilo que os meninos faziam (palma da mão com palma da mão seguido de soco com soco), apenas apertou sua mão como os adultos faziam.

Durante o aperto de mãos, Olavo se sente como se estivesse sendo resgatado do fundo do mar, uma sensação estranha que sua mente infantil não conseguia entender no momento, mas que um dia entenderia. “Um dia entenderia”, ele pensou, e em breve entenderia de fato.

Em seguida, Olavo diz que está ficando tarde e já é hora de ir para a casa do tal amigo para o almoço e despede-se da visita e de sua mãe que, irremediavelmente, fica contente ao ver os dois saindo para se divertirem juntos.

Minutos vão passando e nem uma palavra sai da boca de Olavo enquanto eles caminham sem rumo. Até que eles chegam a uma praça de formato octogonal, onde velhos jogavam dominó e crianças mais novas soltavam pipa ou brincavam com suas bolinhas de gude atirando-as umas nas outras. Imediatamente, sentam em um banco de onde observam algumas pessoas circulando pela área e pombos comendo migalhas de pão arremessadas por um mendigo. Eles ficam observando tudo o que acontece naquela área, sem nem sequer olhar um para o outro. Após muito tempo apreciando o que ocorria em volta... O tédio está presente nos dois e Olavo arrisca uma de suas alternativas para quando não houvesse nada mais a ser feito.

– Ehh, está começando a ficar chato aqui não é?! – diz com palavras trêmulas, pois não se sentia bem conversando com alguém que não poderia respondê-lo.

Manuel olha para Olavo com um sorriso em seu rosto, "o famoso sorriso". Olavo não entende se significa um “sim” ou um “não”. “Não acredito que será desse jeito”, pensa Olavo. Já desanimado, chega a outro pensamento: “se ele não tentar responder ou, ao menos, me surpreender, eu desisto”. E decide tentar puxar um elo pela última vez.

– Tá com fome? Eu estou morrendo de fome – diz e, ao mesmo tempo, se lamenta por não ter trazido algo para comer, já que não haveria aquele almoço que havia “combinado” que iria.

Do sorriso, Manuel cai em uma risada sarcástica que Olavo de início não entende. Enquanto ri, Manuel tira de seu bolso uma carteira de cigarros e oferece um para Olavo. Este também cai em uma gargalhada inevitável, e diz:

– Realmente, eu já ouvi falar que cigarro tira o apetite – balbucia enquanto continua rindo tanto pela piada de mau gosto quanto pelo seu pensamento anterior: “se ele não tentar responder ou, ao menos, me surpreender, eu desisto”.

De fato, aquilo foi uma resposta e, sem dúvida alguma, o surpreendeu. Ao parar de rir e refletindo sobre a situação, Olavo já ia perguntando... “– Como que você anda por aí com cigarros no bolso? Seus pais não vão brig...”. Mas, subitamente, decide não fazer o comentário ao perceber que ele não ligaria e principalmente porque o cigarro continuava sendo estendido em sua direção.

– Tá falando sério? Eu só tenho treze anos e...

Olavo foi interrompido por Manuel, que botou na própria boca o cigarro que até então oferecia e o acende com um isqueiro zippo onde havia gravado em alto relevo “Fuck Capitalism!”. Olavo abismado, porém com certo entusiasmo, diz sem pestanejar:

– Eu também sei fumar – de imediato ele pega a carteira da mão de Manuel e retira um cigarro. “Ele só é dois anos mais velho do que eu, e ainda é mudo, eu também posso!”, pensa Olavo com a velha discriminação que, como nunca, está tão prestes a perder.

Com o “Fuck Capitalism!”, ele acende também seu cigarro. Manuel com seu sorriso único até então, cai na gargalhada novamente quando Olavo começa a tossir após o trago. Apesar de estar “pagando mico”, ele também cai na gargalhada. A partir deste momento, algo muda e Olavo faz uma infinda amizade tanto com o amigo mudo quanto com a nicotina.

Manuel sem parar de rir, transmite:

– As coisas que nos matam equivalem às mesmas coisas que nós acrescentamos à vida, à natureza rebelde, – instinto! – é quando perdemos a oportunidade de usufruir essas coisas que damos mais valor a elas. Não acumule nada... aproveite tudo. Aproveite o dia!

Manuel, com os olhos avermelhados e sem parar de rir, fita os olhos de Olavo, que parecem duas bolas de neve cinzentas (que agora serão seu novo cobertor contra monstros imaginários pelo resto da vida). Ele, que até então entendia como funcionavam as regras básicas da vida, descobriu novas regras sem a necessidade de experiências adquiridas por hereditariedade ou hierarquias aristocráticas.

Dentre todas as pessoas, apenas Cláudio Manuel entende de exclamações: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

F?I?M

Devin (2003/2004)