Haroldo, a Diva do Grajaú.

Bernardo nasceu no início da década de 60 no Grajaú. tradicional bairro de classe média do Rio de Janeiro, localizado na zona norte e pertencente a Subprefeitura da Grande Tijuca. Este bairro é conhecido por suas ruas arborizadas e tranquilas, constituídas de nobres residências, sendo algumas casas edificadas no início do século XX e que preservam parte de suas características originais, embora dividindo a paisagem com alguns edifícios de décadas mais recentes. Era filho de um advogado militante da União Democrática Nacional e simpatizante do golpe militar de 64 e de uma filha de um coronel reformado do Exército Nacional, dedicada inteiramente às lides domésticas e aos trabalhos sociais no âmbito da Igreja.

Criado sob as mais severas normas religiosas e educacionais, tendo estudado no Colégio da Companhia de Maria onde completou os estudos até o segundo grau, desde menino Bernardo já chamava a atenção por seus trejeitos afetados e o pelo gosto pelas atividades artísticas, sobretudo pelas artes cênicas.

No entanto, seu pai queria que ele seguisse seus passos e se formasse em Direito para substituí-lo quando se aposentasse em sua banca de advocacia.

Assim, Bernardo passou toda a sua adolescência e juventude sob o jugo do seu pai, reprimindo todos os seus desejos e aspirações. No máximo lhe era permitido durante as festas momescas se travestir de mulher, sem que seu pai soubesse, participando dos desfiles dos blocos de rua, de maneira que, por breves momentos, ele podia extravasar e liberar os seus desejos e sentimentos mais profundos.

No início dos anos 80, período em que o País estava em polvorosa com a campanha das "Diretas Já", Bernardo estava se formando em Direito e planejava dar o seu "Grito de Independência" saindo de casa e ficando livre da opressão que até então vivia e, finalmente, fazer o que lhe desse na cabeça. Porém, seus planos foram frustrados pela intervenção de seu pai que tinha outros planos para ele.

A velha raposa tinha tudo planejado. Seu filho acabara de se formar e iria trabalhar com ele na banca de advocacia, mas além disso também teria que casar e formar uma família para poder garantir a continuidade do seu nome e manter por tempo indefinido a banca de advocacia da família.

Após ouvir o que seu pai planejava para o seu futuro, o primeiro impulso de Bernardo foi de aproveitar aquele momento e gritar bem alto que não faria nada disso e que iria embora e viver a sua própria vida. Mas, depois de refletir em silêncio, ele ponderou e mediu as terríveis consequências que tal ato acarretaria:

-seu pai não aceitaria tal disparate e se, caso viesse a acontecer, não lhe daria nenhum apoio financeiro e profissional;

-ele teria que começar do zero, apenas com o diploma de bacharel em Direito na mão e sem nenhuma referência ou indicação de quem quer que fosse.

Assim, resignado e sem outra alternativa, Bernardo aceitou as imposições do pai, que inclusive já havia escolhido a moça com quem viria a se casar.

Bernardo submeteu-se a vontade do seu pai naquele momento, mas jurou para si mesmo que ele aproveitaria esta situação trágica para de alguma maneira, ainda que demorasse 50 anos, para realizar o seu sonho de menino que era de ser um artista das artes cênicas.

Passados dois meses do casamento, durante os quais Bernardo não havia sequer beijado a sua desconhecida esposa, Bernardo ao acordar em seu quarto, (sim. eles dormiam em quartos separados) teve uma revelação de como ele poderia realizar o seu sonho de criança. Já que ele não poderia ser um artista, quem sabe o seu filho não realizasse o seu desejo.

E assim fez. Aproximou-se aos poucos de sua esposa e começou a conquistá-la, pois apesar do que muitos pensavam ele não odiava as mulheres, ele as amava, tanto que o seu maior desejo, além de ser artista das artes cênicas, seria ter nascido mulher. Todavia, mais uma vez o destino foi cruel com ele. Sua mulher ficou grávida de gêmeos e para sua infelicidade nasceram duas lindas meninas.

Bernardo, mesmo assim, não desistiu. Passaram-se dois anos e, finalmente sua esposa engravida novamente e nasce um rebento macho. Bernardo não se continha de alegria e silenciosamente prometeu a si mesmo que usaria todo o tempo disponível de sua vida para concretizar o seu sonho, ou seja, fazer com que o seu filho fosse um artista das artes cênicas.

Passaram-se 25 anos e o filho de Bernardo havia crescido e agora estava formado em Direito e trabalhando com o pai na banca de advocacia, mas paralelamente, sem que o avô soubesse, trabalhava como coreógrafo em peças de teatro, para orgulho do pai. Tudo corria às mil maravilhas, até aquela fatídica quarta feira de cinzas, quando a família estava toda reunida em casa assistindo televisão e aparece no monitor o desfile do bloco "As Loucas do Grajaú". O pai de Bernardo quase engoliu o cachimbo que tinha na boca quando, ao ver a rainha do bloco, reconheceu imediatamente nela o seu querido neto Haroldo, mais conhecido nos meios artísticos como a "Diva do Grajaú". Bernardo em meio ao choro de sua mãe e os desaforos proferidos por seu pai, sentiu-se realizado. Acabara de ver realizado o seu sonho de infância. Seu filho estava onde ele sempre desejou estar. Livre e fazendo aquilo que mais gostava: Viver a vida como ela é.... *

*Texto em Homenagem a:

Nelson Rodrigues.

Miguel Falabella.

Davi Coimbra.