Estranho justiceiro

Jorge Palma, um cientista eclético, estava há algum tempo estudando o conteúdo de um meteorito que caíra 4 anos antes. E tinha algum resultado surpreendente.

Ele possuía um laboratório de pesquisas avançadas numa pequena propriedade no Agreste pernambucano, mantido por seus próprios recursos, conseguidos com a venda de banana transgênica, variação de banana prata, com maior resistência a pragas e maior teor de frutose.

No Natal de 1986, Jorge estava conversando com amigos, numa confraternização em seu sítio, em Bom Jardim, quando, ao olhar para o céu, viu uma luz forte. Percebeu, em fração de segundo, que ia crescendo a luminosidade e aumentando o tamanho daquele fenômeno.

De início, não entendeu bem. Intuiu, logo a seguir, que fora um meteorito que caíra, desintegrando-se. A trajetória do corpo o levaria diretamente para onde Jorge estaria. Ou seja, seria atingido por um corpo celeste, não tivesse este se desintegrado antes.

Tal situação o deixou pensativo. Por que estaria ele na trajetória de um meteorito, e por que não fora atingido?

Os seus amigos notaram uma expressão meio alheiada de Jorge. Alguns chegaram, até, a sentir uma luminosidade em sua face. Como tudo permaneceu e continuou como antes, esse fato foi logo absorvido pelas conversas que continuaram. Logo estaria esquecido.

Dois dias depois, ao barbear-se, notou um pontinho em sua testa. Escarificou-o e viu sair um pequeno grão. Aquilo o intrigou. Lembrou-se, então, do fenômeno que presenciara na antevéspera. E, num misto de surpresa e êxtase, entendeu que havia sido atingido, sim, pelo meteorito.

A desintegração do corpo cadente tinha acontecido na medida e no tempo certo para que chegasse a seu - agora - hospedeiro com a dimensão de um corpúsculo, que não afetaria seu corpo macroscopicamente.

Mas... e sob o ponto de vista molecular, celular, microscópico?

Com todo o cuidado, e guardando o maior sigilo, pôs o grânulo a ser examinado física, química e biologicamente.

Fisicamente aquele grão apresentava cor cinza-grafite, com superfície porosa, irregular.

Sob o ponto de vista químico, tratava-se de um composto de carbono, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio. Ou seja, poderia ser um corpo orgânico.

O estudo biológico revelou um composto orgânico polímero de um nucleotídeo não conhecido, diferente dos que compõem o DNA ou o RNA, como nós os conhecemos. Chamou-o de cosmosina.

Procurou combinar aquele polímero com algumas cadeias de DNA de drosófila, notando que ele se combinava, substituindo algumas adeninas. A drosófila resultante da experiência transgênica, em sua segunda geração, começou a apresentar comportamentos diferentes do habitual. Enquanto alguns insetos alimentavam-se regularmente, com um comportamento calmo, outras, que se mostravam agressivas, pereciam em pouco tempo.

Em estudo biológico mais aprofundado, Jorge supôs que aquela molécula poderia ser uma espécie de vírus, ou um plasmídeo, parte do DNA de algum organismo protocelular.

Estava ainda em seus estudos e suposições, quando chegou-lhe à lembrança que, se aquilo fosse um vírus, ou mesmo um plasmídeo, ele poderia ter sido contaminado e algumas de suas células teriam sofrido uma mutação traumática.

Por ter um temperamento calmo, pacato, amigo de todos os seus colegas, Jorge tinha trânsito livre em todos os locais por onde andava. E com todos gostava de brincar e apresentar tratamento amável.

Num determinado dia, por conta de um ato irresponsável de um empregado de seu sítio, Jorge irritou-se. Essa irritação, diferentemente de outras raras que já tivera anteriormente, levou-o a prostrar-se, de tal maneira que pensou estar sendo acometido de algum infarto, ou algum acidente vascular cerebral. Não conseguia definir, mas o mal-estar era enorme.

Mais outros dois episódios semelhantes, nos 3 meses que se seguiram, levaram Jorge a pesquisar com profundidade aquela moléstia que o estava acometendo.

Colheu sangue venoso para um hemograma de rotina, tentando tomar pé da situação. Tudo bem, tudo normal. Porém...

Porém o exame microscópico demonstrou pequenas diferenças nos núcleos dos leucócitos.

Levou um dessas células a exame químico cromossomal, e descobriu a presença da cosmosina.

Surpreso, passou a fazer biópsia de vários tecidos seus, para pesquisar a presença daquele nucleotídeo. Para surpresa sua, todas as células examinadas apresentavam cosmosina.

Foi além, e viu que a cosmosina prendia-se a uma parte do cromossoma 17, num gen pouco estudado até então.

Ainda não tendo nenhum resultado que apontasse alguma função daquele nucleotídeo, continuou a pesquisa, inoculando partículas cromossômicas em animais.

Iniciou inoculando em 4 cães que tinha no sítio. Os cães tinham temperamentos diferentes, que variavam da extrema docilidade à ferocidade quase incontrolável.

Poucos dias depois, os cães ferozes começaram a apresentar comportamentos esquisitos, sempre depois de algum estímulo a seus avanços de ferocidade. Um Fila, brabo e indócil, morreu. Outro, que teve alguns episódios de síncope, teve uma modificação na agressividade, que era acompanhada da remissão dos sintomas então apresentados, sempre que se tornava menos agressivo.

Este fato - a modificação de agressividade que se seguia a uma síncope - levou-o a arriscar-se em mais e mais pesquisas.

A fonte viva de material para as pesquisas era seu próprio corpo. Por ser de mais fácil colheita e melhor conservação, passou a fazer cultura de linfócitos. Deles conseguia isolar o cromossoma 17 e utilizá-lo nas inoculações.

Tudo ficava devidamente anotado em sua caderneta de pesquisa. Depois, transpunha para uma planilha no seu computador, onde cruzava as informações, para buscar respostas e conclusões.

Longos meses com pesquisas em animais, de vários portes e espécies, e Jorge Palma chegou a uma surpreendente conclusão: estava diante de um gene regulador da agressividade. Mais ainda: um gene punidor dos atos de maldade.

Sim, atos de maldade. Chegou à conclusão específica, quando viu que a agressividade resultante de instinto de conservação e de defesa não desencadeava nenhuma reação. O único caso entre os animais foi o seu cão Fila, que morrera. Intuiu Jorge que aquela agressividade, inerente ao cão mas fora de controle naquele seu Fila, o levara à morte. Nos outros animais a agressividade não pressupunha maldade (os animais não têm esse sentimento tão forte quanto no ser humano). Isso faria com que os sintomas fossem apenas de mal-estar ou de síncope.

Faltava, apenas, experimentar em seres humanos. Ele próprio já era um exemplo acidental da atuação do gene. E começou a programar alguns experimentos.

Existia um problema praticamente impeditivo para tais experimentos: ninguém sabia de suas descobertas. Isto o tornava um experimento empírico, de difícil aceitação pelos meios científicos.

Mas tal fato não o desanimou.

Pensou então, em inocular, camufladamente, o material genético em presidiários. Para tal, precisaria apenas de que tivesse acesso aos mesmos e inventasse uma pesquisa, na qual precisaria de coleta de material dos indivíduos.

Tal fato o deixou apreensivo e, ao mesmo tempo, excitado. Poderia matar o agressor de sua filha, que estava cumprindo pena na prisão por estupro e assassinato em primeiro grau.

Bastou pensar em tal sentimento de vingança, logo teve uma obnubilação. Sentiu que, agora e para sempre deveria sempre ter e incentivar pensamentos positivos e geradores de atos de bondade. De justiça, sim. Nunca de vingança.

...

— Que é que tu quer aqui? — perguntou Zecão ao desconhecido que se aproximava, com uma maleta na mão.

— Venho em paz. Estou fazendo um trabalho de vacinação contra a febre causada por ratos. E vim tentar vacinar esta comunidade.

— E quem te mandou?

— Não foi nenhum político, não. Nada de governo.

— E quem tem interesse na gente?

— Ora, irmão, o mundo é cheio de gente de bem. Gente que quer ajudar os outros.

— Não tem isso por aqui, não.

— Eu sei... Eu sei... Mas eu só estou querendo ajudar.

— Desembucha. Como é isso?

— Eu preciso de aplicar uma vacina nos membros da comunidade. Virei aqui, todos os meses, para acompanhar os casos de doença que possam aparecer, na tentativa de melhorar a vacina.

— E por que minha comunidade? — perguntou, cismado, Zecão.

— Não tem por quê. É a primeira que visito. Pode ser outra, se vocês não quiserem o benefício.

— ‘Tá certo! Vou reunir todos amanhã. Passe na próxima semana, que a gente lhe dá uma resposta.

Jorge, na pele de um agente de saúde, encontrara uma população-alvo para sua pesquisa e - pensava ele - regeneração dos marginais.

E assim fez.

A comunidade de Pedra Pome era uma invasão que agregava gente de baixa renda e - como acontece com essas comunidades - marginais. Entre eles, vários criminosos perigosos.

Aceita a proposta, metade da população foi inoculada com o gene contendo cosmosina.

Pensando em uma ação mais duradoura, foram “vacinados”, principalmente, todos os habitantes em idade de procriação, além das crianças. A intenção era a transmissão hereditária do “gene punitivo da maldade”.

...

Pesquisas sociais aplicadas dão conta de que a comunidade Pedra Pome apresenta sensível diminuição do índice de criminalidade.

As informações colhidas por Jorge Palma dão conta de que os indivíduos mais perigosos tinham apresentado problemas de saúde, o que os levava freqüentemente a procurarem atendimento médico-hospitalar. Isso os impedia de atuar na criminalidade, pois começaram a ser escanteados por criminosos de outras comunidades.

Essas observações o levaram a preparar linhagens de camundongos brancos contendo o gene de cosmosina.

Esses camundongos, em sua terceira geração, já apresentavam o referido gene, em caráter dominante, o que servia para serem utilizados nos preparo de vacinas.

A mediação de amigos o fez credenciar-se como fornecedor de animais para os biotérios.

As vacinas antivirais passaram, então, a ser preparadas com inoculação nos camundongos fornecidos por Jorge Palma.

Agora, os criminosos (e ainda existem) são acometidos de síncopes, todas as vezes que intentam algum ato de agressão.

Jorge vingou sua filha, corrigindo os descendentes dos então seus agressores.

De forma diferente, tornou-se um justiceiro.