Namorada virtual
Lício Coelho tem como passatempo o bate-papo na internet, os chamados canais de chat. Não se escondia muito com nick (apelido) diferente. Usava seu próprio sobrenome Coelho como nick.
Navegando pelo canal “xique”, por indicação de uma revista especializada em internet, conheceu pessoas (se bem que apenas no virtual e apenas pelos apelidos) de vários temperamentos. Com algumas delas manteve um relacionamento virtual mais aprofundado.
Num determinado dia, viu entrar na sala (é assim que se chama cada canal de bate-papo), um nick novo. Apresentou-se com o nome de Foca. Não sabia nada dela, mas foi aprofundando um bate-papo, sem maiores pretensões.
Dias depois, em outro ingresso no canal “xique”, encontrou um amigo de infância. Reconheceu-o porque já haviam conversado a respeito e este tinha informado com que nick se apresentava: Lobo.
Algumas vezes, nos dias que se seguiram, houve coincidência de os três estarem presentes na mesma sala de bate-papo: Coelho, Lobo e Foca.
Travavam conversas variadas, porém não banais. Trocavam informações culturais, sobre ciências, música. Uma conversa que se pode chamar de boa.
De outra vez, navegando e procurando outras salas de bate-papo, encontrou uma de nome diferente: “xyi”. Não sabia o que significava, e entrou. Surpreso, encontrou apenas Lobo e Foca. Estavam conversando em uma sala criada por eles, para conversas reservadas. Notou, pelas conversas, que estava havendo algo mais entre os dois. Mas deixou pra lá. Internet é assim mesmo. Nós nem sempre mostramos nossa face, nem sempre dizemos toda a verdade.
Mais surpreso ainda Coelho ficou, quando viu na sua tela um pedido para conversa privada, uma pvt. Era Lobo, que desejava conversar.
Permitiu a entrada, e travou-se uma verdadeira confissão, como se estivessem numa sala de psicanálise e ele, Coelho, fosse o psicólogo. Com uma sutil diferença: já conhecia Lobo pessoalmente.
Começou o diálogo.
...
Lobo — Oi, Coelho.
Coelho — Oi. Tudo bem contigo?
Lobo — Tudo. Estás conversando com Foca?
Coelho — Estou. Mas ela caiu. Deve voltar já.
Lobo — Se ela voltar, diz a ela que a gente está conversando em pvt.
Coelho — Certo. Mas diz de que se trata. Estou sentindo ansiedade em tua forma de expressar.
Lobo — É...
Algum tempo em silêncio...
Lobo — Coelho... Coelho...
Coelho — Diz. Estava falando com Foca. Ela voltou.
Lobo — Pois é... É sobre isso que eu quero falar. Apesar de nunca ter dito nada a você, acho que já percebeu a nosso respeito, não é?
Coelho — Não só percebi, mas já li comentários...
Lobo — Bem, mas não importa.
Coelho — Não sei até onde vai a rede. Por isso eu calo. Apenas leio alguns comentários.
Lobo — Não entendi... Como assim “até onde vai a rede”?
Coelho — A tua parte agora chega a mim. E aqui pára. Não costumo continuar.
Lobo — Entendo. E agradeço. Porque temos um grande problema.
Coelho — Diz, se quiseres.
Lobo — Nós teremos que lidar com um preconceito maior ainda do que já temos, que é a distância espacial. Sabes que ela é mais velha. A distância etária gera maior preconceito.
Coelho — Não te desesperes.
Lobo — Nenhum de nós dois procurou isso. Foi um grande susto quando percebemos no que havíamos nos envolvido.
Coelho — É sério?
Lobo — Sim.
Coelho — Sabes que na internet a gente se apresenta como quer e gosta.
Lobo — Sei, sim. Podemos dissimular tudo. Poderia combater esse argumento. Mas não é o que está acontecendo entre nós dois. Já nos conhecemos na esfera real. Marcamos um encontro.
Coelho — Bem, estou apenas falando como amigo, um amigo mais experiente.
Lobo — O que sei dela é que - pode parecer bobagem - não tínhamos a menor intenção de ter um envolvimento desse porte. Pelo contrário. Achávamos que estávamos vacinados contra tais sentimentos. Eu achava extremamente ridículo quando sabia de algum caso parecido.
Coelho — Fala. Sinto que estás querendo desabafar.
Lobo — De uma hora para outra começamos a ficar ansiosos em nos encontrar, nos falar.
Calou um pouco.
Lobo — Nós adoraríamos saber a tua opinião. Gostaria de saber também por que todo mundo condena esse relacionamento.
Coelho — Pode ser preconceito, desconhecimento de causa, tanta coisa! Há mais coisas entre o céu e a terra...
Lobo — do que sonha nossa vã filosofia.
Após dizer isso, teclou uns sinais, que na linguagem da internet são chamados emoticons. Teclou o símbolo de um sorriso:
:)
Coelho — Diz-me uma coisa: é namoro mesmo?
Lobo — É. Não pode ser sexo pura e simplesmente.
Coelho — Sabes que há amizades que são maiores que muitos amores.
Lobo — É maior que as amizades.
Coelho — Como dizia Antonio Vieira: amar, verbo intransitivo.
Lobo — Antonio Vieira, não. Mário de Andrade.
Coelho — Para veres como estou por dentro.
Lobo — Talvez você seja a única pessoa que possa entender o que sinto. Muitos acham tudo ridículo.
Coelho — Bom, eu posso achar estranho, posso concordar ou não, mas não tenho o direito de achar ridículo. Cada um tem seu .
A conversa ainda durou algum tempo, sempre sobre o assunto do namoro entre os dois.
Dois dias depois, recebo outro pedido de pvt. Dessa vez era ela: Foca.
...
Foca — Oi, Coelho.
Coelho — Oi.
Foca — Vim bater um papo contigo. Já sabes de que se trata. Lobo falou antes.
Coelho — Sim. Sabes que eu o conheço.
Foca — Sei. E que tu não me conheces, a não ser pela net.
Coelho — Sim, é verdade.
Foca — Quando eu conheci o Lobo, para mim era alguém inteligente e diferente.
Coelho — E ele o é.
Foca — Eu tenho muito tempo de internet, e isso nunca me aconteceu antes. Vi outras pessoas passarem pelo que passo agora. E eu zombava delas. Diziam-se apaixonadas. Como poderiam apaixonar-se por alguém que nunca tinham visto? Eu me sentia imune.
Coelho — E mudaste?
Foca — Um amigo meu começou a me notar diferente, e sondou o que é que estava havendo. Disse que isso é uma cyberpaixão (paixão de computador). E que eu finalmente havia sido atingida por isso.
Coelho — Sim.
Foca — Mas eu estava namorando outra pessoa (na esfera real). Mas só depois de ele tentar vários meses. Confundi carinho e amizade com amor. E então terminei esse namoro. Só pensava em Lobo.
Coelho — Diz-me uma coisa. Lobo sabe disso tudo? Ele sabe que estás me contando?
Foca — Não. Não sabe.
Coelho — E ele gostará de saber que eu estou sabendo? Afinal, eu sou amigo dele há muito tempo.
Foca — Mas eu vou dizer a ele depois. Achei que talvez você conseguisse me ver como eu sou. Isso não é pecado. Eu vivi isolada do mundo, e em muitos aspectos Lobo é mais maduro do que eu.
Coelho — Sei...
Foca — Quando minha família descobrir...
Coelho — Não sabem de nada?
Foca — Não. Sabem que estou namorando uma pessoa do Rio, que conheci na Internet. Mas não sabem mais nada a respeito.
A conversa com ela não demorou muito. Mas consegui sentir que estavam envolvidos mais do que se consegue envolver na esfera virtual.
O envolvimento virtual - que acontece com muita freqüência - é uma identificação de ideais, de sentimentos, de intelectos. Na escala normal, não passa disso.
E aqueles dois namorados estavam ultrapassando a barreira virtual e - como outros diriam em situações opostas - caindo na real.
...
Algum tempo depois, Lício conheceu Foca pessoalmente. E seu nome real. Chamava-se Mirela. Ela estava namorando com Lobo, aparentemente um namoro firme, real.
Mas a vida real nos mostra outra face. E tudo mudou. No ambiente virtual somos o que queremos ser. E amamos quem queremos amar.
A vida real é diferente. Morreu o amor.