O vício

O vício

Muitos, quando não encontram saída para os problemas, se afundam, ainda mais, nas soluções errôneas que procuram. O que antes se resumiria em uma simples equação com resultado inteiro, passa a ser fracionada e com fórmulas, cada vez, mais complexas. A solução, várias vezes, está na frente, mas complica-se com alguns vícios que o problema, muitas vezes, traz.

Roberto observava sua vida desmoronar, seu castelo parecia-lhe feito de areia e estava sendo demolido, dia a dia. Acabara de receber uma notícia, um tanto quanto, desesperadora; perdera seu emprego, às vésperas do Natal. E agora? Agora, Roberto teria que dar a notícia para a sua esposa. Voltar para casa cabisbaixo e taciturno; um resto de homem cheio de sombras e demônios.

- Carolina, tenho uma péssima notícia para te dar.

- O quê, Roberto? Não me venha dizer que bateu o carro de novo?

- Não! Pior ainda, acabei de ser demitido!

- Puta que pariu, o que você está dizendo? Nessa hora, Roberto falou mais alto e se irritou.

- Eu já falei, porra, perdi o emprego.

- E o que vamos fazer da nossa vida?

- Calma, para tudo tem um jeito.

- Mas, esse jeito, tem que ser logo, porque a barriga não espera.

- Mas, ainda, vou receber meus tempos de serviço e depois o seguro desemprego. Nesse intervalo, eu procuro emprego.

- Ainda bem, vamos rezar pra tudo dar certo.

- Cadê as crianças?

- Estão na casa do vizinho.

Roberto, então, entrou em seu quarto e foi tomar um banho, mas, como não podia mostrar fragilidade para a sua família, chorava embaixo do chuveiro, copiosamente. Passava segurança para Carolina, mas sabia que as coisas iriam complicar. Ele sabe que a busca pelo emprego não está fácil e a procura tem que ser logo e urgente. O tempo, para quem não produz, corre mais veloz e vai, aos poucos, deixando para trás as oportunidades, e ele não queria perder tempo.

Carolina era uma esposa compreensiva e apoiava o marido sempre. Claro que, às vezes, saía do eixo e se descontrolava, mas nada que fosse grave. Roberto sabia que tinha uma esposa companheira e que poderia contar com ela para o que desse e viesse. Os filhos, muito bem educados, até então estudavam em colégios particulares, mas com as contenções de despesa que logo viriam, isso iria mudar.

A vida segue o seu rumo normal, mas fora do padrão desejado do casal. As coisas começaram a se espremer e cortes foram feitos. As crianças já não se matricularam em colégios particulares e o lazer familiar passou a ser a televisão. Tudo para manter ainda uma mesa, à contento.

Os meses que viriam seriam dolorosos. Roberto procurava, mas, apenas encontrava o não, e cada dia que passava era algo que ele tinha que despedir da sua vida. As contas aumentavam e o que ganhava do seguro-desemprego não era suficiente. Precisa colocar as fianças em dia, por isso, resolveu vender o carro, seu sonho de muitos anos. Mais uma vez no chuveiro, suas lágrimas rolaram ralo abaixo. Carolina fazia de tudo para manter a família unida e procurava animar Roberto, sempre, que o via querendo desistir.

- Calma, amor, tudo vai dar certo!

- Mas eu procuro e não encontro nada, Flor de Lótus. Ele sempre a chamava de Flor de Lótus, numa forma carinhosa, como um apelidinho que, de vez em quando, deixava escapar.

- Vai aparecer trabalho, você é muito bom no que faz.

- Mas, se demorar mais tempo, não sei o que farei, minha Flor de Lótus, ou melhor, vender.

a pé.

- Com esse dinheiro do carro, dá para a gente aguentar mais uns meses.

- Mas, agora, vou ter que ir de ônibus e, se de carro já era difícil, imagine

De repente, as crianças entram correndo em casa e falam com Roberto:

- Pai, a gente quer um tênis, igual ao do Luizinho, o senhor dá pra

gente?

Carolina então responde:

- Mas esses tênis de vocês ainda estão novos.

- Não, mãe, já está até soltando o solado. Roberto então fala.

- Cláudio, Joaquim, papai vai explicar uma coisa. Papai tá...

Resolveu não contar a verdadeira situação, pois, naquela idade, eles nada poderiam fazer e então:

- Papai vai comprar o tênis de vocês. Carolina interrompe e diz:

- Mas hoje não, e vão logo para a cama, pois já está tarde.

- Amanhã tem aula, vão dormir, vão. Falou Roberto.

- Valeu, pai! Oba, oba!

As crianças saíram eufóricas com o futuro presente que iriam receber, mas Carolina falou.

- Roberto, não é hora de comprar tênis para as crianças. Estamos contando até moedas e não podemos gastar em vão.

- Eles são meninos ótimos e merecem. Faz tempo que não ganham nenhuma gude, não vai fazer falta.

Roberto cumpriu o prometido e, noutro dia, trouxe de presente o tênis das crianças, e mais um não como o seu presente. Roberto parecia cansado e desestimulado, ainda mais quando viu sua esposa costurando para fora para ganhar alguns trocos para ajudar na renda da casa. E, como de costume, o chuveiro o viu chorando mais uma vez. Roberto recebeu, pela última vez, o seu seguro-desemprego, e com muitas contas atrasadas, não amortizou nem a metade das dívidas. Carolina passou a ter clientela e já conseguia manter a mesa com pratos cheios e, enquanto isso, Roberto corria atrás do seu tão almejado emprego.

Certo dia, depois de mais um não, ele parou num bar e, pela primeira vez, embriagou-se. Voltou para casa trôpego e brigando sozinho com a vida. Bateu na porta, pois sua condição não o deixava colocar a chave na maçaneta.

- O que aconteceu, Roberto? Parece que você bebeu! Surpresa, falou

Carolina.

- Bebi minha desilusão, meus nãos e essa vida que nada me oferece. Sem conseguir falar, ele sussurrava.

- Vem, vou te dar um banho. Ainda bem que as crianças estão dormindo.

- Eu te amo, Carol, te amo... Roberto a beijava enquanto dizia que a amava.

- Eu também, mas vamos tomar um banho para curar essa cachaça

toda.

Carolina deu um banho em Roberto e o colocou na cama; ele logo

apagou. Dessa vez, quem chorou foi Carolina, mas não procurou esconder as lágrimas. Sentou em sua máquina de costura e foi trabalhar até mais tarde.

Roberto acordou envergonhado, mas Carolina não comentou nada. Serviu o café, mandou as crianças para a escola e foi costurar. Roberto a olhou e depois do café saiu em busca de trabalho. Chegou à noite e mais uma vez embriagado, e Carolina, novamente, o acolhia e lhe cuidava.

Os meses passavam e nada de Roberto arrumar emprego. Esta situação estava lhe deixando transtornado, por isso aliviava suas frustrações na bebida. Na mesa, agora, faltavam certos alimentos e ambos viviam contando as migalhas para pagar contas extras. O natal estava próximo e Roberto e Carolina queriam, apenas, de presente, um emprego. As crianças pediam brinquedos para Papai Noel e, dessa vez, o bom velhinho iria esquecer o endereço daquela casa.

Na noite de natal, Carolina ganhou mais dinheiro e, com muito esforço, conseguiu fazer uma pequena ceia, mas teve que costurar triplicado, afinal, no natal, todos querem roupas novas. E foi graças a esse desejo que ela conseguiu aumentar a renda naquele mês.

Roberto, mais uma vez, chegou bêbado. Tal situação virou rotina, e, dessa vez, explodiu:

- Eu não aguento mais! Por que meu Deus, você não me leva logo?

As crianças assistiram tudo e começaram a chorar, enquanto Carolina tentava acalmar o marido. Ela quis levá-lo para o banheiro, mas num gesto grosseiro, a empurrou e ela caiu. Nessa hora, Roberto curou a embriaguez.

- Meu Deus, o que eu fiz?

Carolina pegou as crianças e foi para o quarto, enquanto Roberto se martirizava no velho sofá.

Os dias passavam e Carolina se desdobrava para fazer dinheiro e Roberto se entregava ao vício. Já desistira de procurar emprego e agora se tornara um estorvo para Carolina. Roubava dinheiro, quebrava as poucas coisas da casa e esbravejava por qualquer coisa. Deixara de ser aquele homem pelo qual Carolina tinha amor e respeito.

Muitos não têm equilíbrio para enfrentar situações adversas e se entregam ao primeiro vício, como se ali estivesse a solução para todas as mazelas. Enquanto Carolina se desdobrava para manter comida na mesa, Roberto trabalhava para destruir o seu próprio lar. Dominado pelo vício, já não tinha mais força de vontade e era um andrajo caminhando pela vida. A família estava em cacos e Carolina já não suportava mais aquela situação. Certo dia, raro por sinal, que Roberto estava sóbrio, ela falou:

- Roberto, tenho uma notícia para te dar!

- O quê?

- Eu vou me separar de você. Não aguento mais sua bebedeira, você está acabando com você e comigo.

- Só por que estou desempregado e sem dinheiro, você quer me abandonar?

- Você sabe que não é bem assim! Eu ainda te amo e vou porque você, ao invés de procurar me ajudar, está fazendo das nossas vidas um inferno.

- Se me ama, por que não fica?

- Eu vou dar um tempo na casa de minha mãe. Vou deixar você pensar, um pouco, no que fez da gente. Lá, eu continuo costurando e te mando sempre algum.

- Quer dizer que você vai embora mesmo, e ainda quer me sustentar? Pode ficar com seu dinheiro, eu me viro por aqui.

- Você é quem sabe!

- E, quando você vai?

- Hoje mesmo! Já arrumei tudo e as crianças também já sabem.

- Você também quer tirar meus filhos de mim? Eu já não tenho nada e ainda perco você e as crianças?

- Você não nos perdeu! Você sabe onde minha mãe mora, é só passar por lá e nos ver, mas esteja sóbrio.

Depois dessa conversa, Carolina pegou as crianças e foi embora. Roberto assistiu à cena de longe e chorou, dessa vez, sozinho na sala. Confortou-se, mais tarde, com goles de cachaça e, mais uma vez, embriagou-se.

Roberto se viu sozinho e sem ninguém para frear seu vício; ele se entregara, cada vez mais, à bebida. Alimentava-se mal e o pouco dinheiro que ganhava com bicos, gastava no vício. Estava, cada vez mais, debilitado e definhava a olhos vistos. Parecia querer se matar, mas a pouca fé que lhe restava não deixava cometer tal delito. Então mascarava seu suicídio com doses homeopáticas de morte.

Carolina e as crianças continuavam na casa da mãe e nada sabiam do que acontecia com Roberto. Quando uma amiga contou-lhe que o encontrou dormindo na calçada, bêbado, um trapo, ela emendou. Carolina percebeu que Roberto não havia mudado e decidiu, de uma vez por todas, esquecê-lo.

Roberto, cada vez mais um resto de homem, sem moral e honra, vivia entregue às bebidas e, agora, por final, às drogas. Parecia querer se destruir e se afundava, cada vez mais, no submundo da vida. Os meses passaram e Carolina estava refazendo a sua vida e encontrou, depois de muita espera, um novo amor. Parecia ter esquecido Roberto. As crianças já eram adolescentes pré-vestibulandos e, apesar de tudo, queriam saber do pai. Roberto vendeu a casa, e a cheirou e a bebeu toda. Não morava mais naquela cidade, alguns diziam. Anos se passaram e Carolina resolveu viajar com seus filhos e seu novo marido. Estavam felizes, as coisas voltaram à normalidade e o problema financeiro já não mais existia. Seu novo marido era um advogado bem sucedido e apaixonado pela família que ganhou completa.

Numa certa noite, resolveram deixar o carro e sair a pé para jantar. Andavam todos felizes pela rua, quando avistaram um mendigo na calçada, deitado em papelões e vestido de andrajos.

O mendigo levantou, vagarosamente, estendeu a mão e falou:

- Uma esmola, pelo amor de Deus.

Carolina parecia reconhecer a voz daquele homem, mas não queria crer. Um barbudo, maltrapilho, não, ela pensou, não o conheço.

As crianças olharam aquele mendigo e continuaram andando, enquanto

Carolina tira uma moeda e oferece. O mendigo recebe a moeda e fala:

- Que Deus te dê em dobro, senhora! Carolina então responde:

- Amém!

De braços dados com seu novo amor, olha para trás e ouve o que jamais esqueceria.

- Vá com Deus, Flor de Lótus, que eu, há muito tempo, já não estou com

ele.

Carolina tremeu, quase desmaiou, mas se conteve. Era Roberto aquele

resto de ser humano que estava ali, agora, tinha certeza. Olhou, mais uma vez, para trás, mas não parou, já não havia mais o que fazer. Agora, quem chorou debaixo do chuveiro para esconder as lágrimas foi Carolina. Roberto se perdeu pela vida e esta foi a última vez que ela teve notícias dele.

Mário Paternostro